Resumo
Este texto tem como objetivo
esboçar uma proposta de leitura metodológica dos principais paradigmas que
orientaram a produção do pensamento geográfico no século XX. Para chegar a alguns
desdobramentos paradigmáticos na Geografia como, por exemplo, a ênfase no
método que ocorre nos anos 80 ultrapassando a preocupação com o objeto, e a
consolidação de temas (globalização, modernidade, turismo) ou de tendências
teóricas (Geografia Humanista) que se tornam verdadeiros paradigmas.
Introdução
Considerando-se que um paradigma
se define, em termos gerais, pelo conjunto de idéias, teorias e doutrinas
construídos com a intermediação do método e que caracterizam uma tendência
científica, pode-se afirmar que, historicamente, nos últimos cinqüenta anos,
houve dois grandes grupos de paradigmas (que discutiremos mais adiante) que
foram fundamentais na orientação metodológica da produção do conhecimento
geográfico.
Partimos, inicialmente, do
pressuposto de que uma teoria pode ter três encaminhamentos . O primeiro deles,
aquele que é mais fácil de ser identificado, é a teoria se consolidar e
perdurar norteando o pensamento científico por longo tempo. Outro
encaminhamento que uma teoria pode ter é a sua superação por outras teorias
e/ou paradigmas, mesmo antes que ela se consolide completamente. Finalmente, a
terceira opção é a de que a teoria pode ser negligenciada ou esquecida, não se
tornando referência universal para estudos científicos, apesar de sua
importância na configuração do pensamento.
Os níveis do conhecimento para se abordar os paradigma
Vamos trabalhar com mais detalhes
dois grandes grupos paradigmáticos. Um desses grupos, baseado nos fundamentos
do neopositivismo, teve a linguagem matemática, a neutralidade da ciência e as
temáticas espaciais como suas principais características para a produção do
conhecimento científico. Um outro
baseou-se no materialismo histórico como doutrina e na dialética como método e
se pautou, ora mais, ora menos explicitamente, pelo engajamento ideológico do
pesquisador.
Eles serão analisados
considerando-se diferentes níveis do pensamento
– teórico (elaboração de teorias
que permitem leituras da realidade);
– epistemológico (baseado na
concepção de causalidade, na ciência, para a elaboração das teorias).
Neste último nível, há alguns
pressupostos que podem ser identificados em dois grupos, também de diferentes
níveis, que são:
– gnosiológico (definido pela
concepção que se pretende de objeto e de sujeito e, por conseguinte, de sua
relação com o processo de conhecimento);
– ontológico (identificado pela
noção de homem, de natureza e de ciência).
Dois grandes grupos paradigmáticos
No nível teórico, o tratamento
dos temas depende da definição das variáveis, que podem ser manipuladas em
situações experimentais, partindo-se da neutralidade axiológica do método
científico e da imparcialidade do pesquisador, com conseqüente harmonia e
equilíbrio para os resultados, diferenciando-se a ciência da crítica, ao se
controlar a situação, o fenômeno ou a temática/grupo/lugar estudados. Para se
obter a informação empírica, recorre-se a técnicas de coleta descritivas ou de
análise de conteúdo e se utilizam dados secundários obtidos por questionários e
entrevistas, como técnicas de investigação.
No nível epistemológico, o
conceito de causa é o eixo da explicação científica por- que a relação causal
se explicita no experimento, na sistematização e no controle dos dados através
das análises estatísticas posteriores, cuja validação da prova científica é
fundamentada nos testes dos instrumentos de coleta e tratamento dos dados, e
ainda através dos modelos de sistematização das variáveis e na definição
operacional dos termos
(racionalidade
técnico-instrumental).
Em termos teóricos, essa tendência
caracteriza-se pela tentativa de desvendar conflitos de interesses, pela
fundamentação teórica por meio da eleição das categorias de análise e na sua
articulação com a realidade estudada, pelo questionamento da visão estática da
realidade, por se utilizar apontamentos para o caráter transformador dos
fenômenos, relacionado à preocupação com a transformação da realidade estudada
e da proposta teórica, procurando sempre o resgate da dimensão histórica dessa
realidade, propondo-se as possibilidades de mudanças com base em uma postura
marcadamente crítica.
Epistemologicamente, a concepção
de causalidade é concebida como inter-relação entre os fenômenos, ou seja,
inter-relação do todo com as partes e vice-versa, da tese com a antítese, dos
elementos da estrutura econômica com os da superestrutura social, política,
jurídica, intelectual etc.
Ontologicamente, concebe-se a
realidade (homem, sujeito, objeto, ciência, construção lógica) numa visão
dinâmica e conflitiva, por causa das categorias materialistas de conflito e de
movimento do ser social. A Natureza e a Sociedade são concebidas como partes de
um mesmo movimento, sendo o Homem compreendido enquanto elemento da sociedade e
não apenas enquanto indivíduo.
A práxis dos geógrafos segundo cada um dos paradigmas
Outro aspecto importante foi a
relação com os estudos empíricos. Se o neopositivismo se respaldou nos modelos
matemáticos para a reflexão teórica e abandonou a ciência empírica, o
materialismo histórico continuou com forte base empírica, mesmo que tenha
negligenciado a cartografia como possibilidade da representação dos fenômenos
geográficos.
A Geografia neopositivista, um
conhecimento padronizado e repetitivo, sem qualquer compromisso social. O
diálogo com outros grupos da sociedade civil só se fez pelo caminho burocrático
ou estatal, sem se praticar, na relação sujeito-objeto, o exercício (dedutivo
ou indutivo) das relações empírico-teóricas.
Por outro lado, os geógrafos que
adotaram a dialética como método, tiveram seu conhecimento produzido,
excessivamente carregado pelo discurso, com forte e explícita tendência
ideológica, cujas manifestações ocorreram, principalmente, no campo da
política. Mesmo tendo preocupações de caráter empírico, muitos geógrafos
resvalaram na vertente do discurso repetitivo, procurando nas obras de Marx o
único fundamento possível para se explicar a realidade, esquecendo-se que o
próprio Marx elaborou suas teorias na perspectiva histórica, de transformação
da realidade.
Os desdobramentos dos paradigmas – uma interpretação que exige cuidado
Ao longo do século XX, muitas
vezes as orientações temáticas foram se transformando em paradigmas. Uma das
orientações que podemos apontar foi a ênfase na discussão da escala por causa
da adoção de temas transversais como a globalização e a modernidade. Tendo como
base a complexidade social e a afirmação da cidade como ambiente básico nas
relações de produção, esses temas foram discutidos principalmente com os
sociólogos, mas tiveram várias contribuições de filósofos, antropólogos,
arquitetos e historiadores.
Quanto ao tema modernidade, no
nível teórico, as histórias de vida e o discurso próprio, com a incorporação da
informação a partir da postura do investigador, é a base para se utilizar as
técnicas qualitativas, que se realizam por meio da pesquisa participante, de
entrevistas, de relatos de vivências, da observação e de práticas alternativas
e inovadoras. Em termos epistemológicos, essa tendência, que pode ser também
considerada um terceiro grande paradigma da ciência ocidental, pauta-se pela
postura crítica de autores da fenomenologia, com interesse em desvendar as
características do objeto. A historicidade é ausente nessa tendência, pois há,
por parte do pesquisador, uma preocupação que podemos denominar exacrônica.
Em termos ontológicos, concebe-se
a realidade (homem, sujeito, objeto, ciência, construção lógica) a partir de
uma visão dinâmica, racional e de interação de todos os elementos da realidade
(categorias racionais de conflito e complementaridade), tendo-se como doutrina,
por exemplo, o existencialismo. A Natureza comparece como concepção e idéia,
apreendidas no processo de conhecer, e o Homem se define enquanto Natureza
pensante. Essa tendência, que podemos chamar de fenomenológica, tem sido
utilizada, com reconhecida consistência, na Geografia Humanística para a interpretação
das manifestações culturais de grupos específicos e do cotidiano urbano.
A modernidade pode ser analisada
pelo ângulo da necessidade que, em alguns momentos, a própria consistência dos
paradigmas exige dos intelectuais na busca de novas idéias, proposições e
fundamentações para tentar ler e explicar a realidade.
A globalização, outra temática
que ganhou força nos últimos anos do século XX, se consolida como desdobramento
paradigmático por sua importância transversal na produção do conhecimento geográfico.
As análises tiveram, mesmo que consideremos que tenha havido algumas
interseções interdisciplinares, forte influência do economicismo, ênfase no
papel da técnica, análise das transformações nas noções de espaço e tempo, que
estão na base, também, da modernidade, estruturação dos sistemas da
economia-mundo como paradigma, ou mesmo a logística como catalisador das
transformações.
Outra idéia que emerge da análise
desses dois temas é a sua relação com o espaço geográfico e suas múltiplas
determinações. Quer o espaço seja definido como sistema de objetos e sistemas
de ações, quer seja definido como reprodução das relações de produção ou
considerando outras referências ontológicas, ele terá sua leitura condicionada
pela modernidade ou pela globalização.
Ainda como orientação
paradigmática, podemos citar a emergência de outras temáticas, como o turismo,
que foi rapidamente incorporado pelos geógrafos, dentro de um pragmatismo que
ultrapassou as fronteiras científicas, chegando-se às propostas de intervenção
por parte de diferentes atores sociais. Abordado, em grande parte, como solução
puramente econômica para áreas economicamente depressivas ou com paisagens
atraentes, o turismo deverá ser enfocado, doravante, como uma atividade
econômica que propicia a produção e a comercialização de uma mercadoria com
diferentes preços e valores culturais: a paisagem.
Por outro lado, a questão
ambiental, foi encarada, muitas vezes como a solução para a superação da
dicotomia entre Geografia Humana e Geografia Física. No entanto, mais
importante, do ponto de vista socioeconômico, esse paradigma deverá merecer
atenção dos cientistas por causa das novas concepções sobre os recursos
(naturais e humanos) e suas características de esgotabilidade.
Uma mudança para o paradigma das
linhas e das redes como forma de ler e interpretar o território pode gerar
dúvidas porque, anteriormente, na Geografia, já se falou, por exemplo, em
região nodal, definida por um centro predominante, que articularia as relações
com outros centros menores, baseando-se em ligações lineares definidas por
fluxos de pessoas e mercadorias. Essa noção de região apontava para a sua
configuração em áreas definidas pelas ligações lineares, mas também pela
constituição de um conjunto de cidades que se dispunham linearmente no
território.
Essa mudança vai exigir,
necessariamente, novos instrumentos básicos para a elaboração da informação
geográfica como, por exemplo, o domínio técnico e a utilização, cada vez mais
intensa, dos recursos de informática. O domínio da instrumentalização apontada,
que exigirá algumas práticas dos intelectuais, deverá mudar o seu cotidiano,
principalmente no que se refere ao seu local de produção (gabinete de trabalho,
pesquisas empíricas), ao local de discussão ou disseminação (salas de aula,
encontros científicos) e às formas de disseminação das idéias (dos livros em
papel para a internet ou o livro virtual).
Outro campo de interesse que
poderá exigir muitos estudos é a abordagem do circuito produtivo pelo
encadeamento dos momentos de produção, circulação, troca e consumo, superando,
definitivamente, os denominados setores primário, secundário e terciário da
classificação de Colin Clark, elaborada na década de 1930.
Outra tendência que vai exigindo
cada vez mais a atenção dos geógrafos é o fenômeno da migração que ganha
importância internacional. Por causa da necessidade de qualificação crescente
dos migrantes para o exercício de atividades que vão, aos poucos, selecionando
as pessoas qualitativa e quantitativamente, foram se configurando não só novas
dimensões de ganhos e rendimentos, mas também se estabelecendo elementos
distintos na localização das residências e dos locais de trabalho.
Abrindo outras possibilidades para o debate
Para completar este quadro de
mudanças paradigmáticas, pode-se afirmar que, doravante, a Geografia poderá ver
sua característica disciplinar tocada, na interface com a História e a
Filosofia, pela necessidade de se superar, buscando a produção do conhecimento
científico não apenas com temário próprio, mas com base na ciência em sua
totalidade, como afirmara Marx: como a Ciência da História.
SPOSITO. E. S. A propósito dos paradigmas de orientações
teórico-metodológicas na Geografia contemporânea. Revista Terra Livre, n. 16,
p. 99-111. AGB: São Paulo. 2001
Fichamento por Kelly Leão
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