segunda-feira, 30 de setembro de 2013

GEOGRAFIA FENOMENOLÓGICA: ESPAÇO E PERCEPÇÃO

A introdução da fenomenologia na Geografia pressupõe uma abordagem do espaço que considera a percepção do sujeito como integrante e em permanente interação. Assim, o mundo vivido e a subjetividade tornam-se fatores importantes para compreensão do espaço nos estudos geográficos.

 INTRODUÇÃO
O estudo se justifica pelo fato de a fenomenologia criticar as “verdades” da ciência racionalista, apresentando outras formas de conhecimento que se baseiam na percepção, na vivência mundana e no processo de subjetivação dá através do método fenomenológico que considera a percepção, o mundo vivido e a subjetividade.
Merleau-Ponty foi audacioso no que tange à situação da ciência moderna acusando-a de mascarar a realidade social. Critica a dicotomia nas ciências modernas que levam à generalização do mundo.

A GEOGRAFIA FENOMENOLÓGICA
Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty propõe que a Filosofia não pode impor formulas regras ou dogmas para a compreensão do mundo, mas sim levar-nos a uma percepção apurada do mundo.
“A fenomenologia “é a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é, e sem nenhuma deferência à sua gênese psicológica e às explicações causais que o cientista, o historiador ou o sociólogo dela possam fornecer” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.01-02).
O pensamento racionalista, pautado na objetividade, desconsidera o sujeito da percepção. Merleau-Ponty (1999) entende que o sujeito encontra um mundo totalmente pronto, sendo este mundo um “palco de manifestações possíveis”, a percepção consagra como uma forma dessas manifestações. Um ser que percebe torna-se parte das coisas e não consegue desprender-se das coisas, e acaba produzindo uma impressão perceptiva dos fenômenos, podendo descrever coisas de um lugar distante, mesmo que não tenha ido a este lugar.
A Geografia Fenomenológica surgiu com base nas concepções filosóficas da fenomenologia como forma de reação ao objetivismo positivista, o excesso de racionalismo, a materialização, a teorização, a instrumentalização, a ideologia e o dogmatismo apresentado pela racionalidade científica. As críticas avolumaram e fizeram a Geografia buscar novos caminhos e novas fontes teóricas.
A corrente da percepção apresenta interação entre Geografia, Psicologia e Sociologia que buscam uma nova análise espacial, resgatando a totalidade do homem, evitando o seu reducionismo.
A Geografia da percepção, segundo Corrêa (2001, p. 30) “está assentada na subjetividade, na intuição, nos sentimentos, na experiência, no simbolismo e na contingência, privilegiando o singular e não o particular ou o universal e, ao invés da explicação, tem na compreensão a base de inteligibilidade do mundo real”. A Geografia da percepção propõe estudos que consideram o mundo percebido, o mundo vivido e mundo imaginado pelos indivíduos. Para Lencioni (2003, p. 150-151) “a consideração da percepção advinda das experiências vividas é, assim, considerada etapa metodológica importante e fundamental”.
Para Pereira (2003), em linhas gerais a Geografia Fenomenológica propõe uma orientação metodológica que utilize técnicas de observação, questionário, entrevistas, depoimentos, entre outros; que enfatize o estudo de eventos únicos, contrariamente aos estudos de eventos gerais; que incorpore o indivíduo no processo de construção do conhecimento, sendo que cada indivíduo apresenta especificidades para apreensão e avaliação do espaço; que resgate as noções de espaço e de lugar, uma vez que ambos trazem consigo a ideia de percepção, valores, comportamento, atitudes e motivações; e que priorize aspectos relacionados a subjetividade, intuição, simbolismo, sentimentos e experiências e o espaço torna-se concebido pelo espaço presente.

O ESPAÇO E A PERCEPÇÃO
A ideia de um espaço homogêneo completamente entregue a uma inteligência sem corpo é substituída pela ideia de um espaço heterogêneo, com direções privilegiadas, que têm relação com nossas particularidades corporais e com nossa situação de seres jogados no mundo (MERLEAU-PONTY, 2004, p.17).
O espaço é vivido e percebido de maneira diferente pelos indivíduos, uma das questões decisivas da análise geográfica que se coloca diz respeito às representações que os indivíduos fazem do espaço. Essa Geografia procurou demonstrar que para o estudo geográfico é importante conhecer a mente dos homens para saber o modo como se comportam em relação ao espaço. (LENCIONI, 2003, p. 152)
Numa perspectiva geográfica, a fenomenologia trás visão antropocêntrica do mundo e recupera o humanismo ao destacar significados e valores atribuídos ao espaço. O espaço vivido passa a ser construído socialmente através da percepção e da interpretação dos indivíduos, revelando as praticas sociais.
O espaço não é ambiente (real ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 327 - 328).
Dentro do objeto existe a essência, então, torna-se necessário conhecer a essência para não ficar preso a aparência, pois o conhecimento está na essência.
“O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; estou aberto ao mundo comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 14).
A representação gráfica de escala é o significado mais usual e mais simples para representar áreas. Mas a simplicidade da matemática esconde a complexidade da representação do termo quando trata de recorte espacial. Mesmo que o recorte escolhido seja consciente ou inconsciente existe uma percepção do espaço total e/ou fragmentação espacial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao contrário da ciência moderna, é interessante observar que a fenomenologia propõe uma aproximação e/ou uma relação entre o sujeito e o objeto no processo de conhecimento, conduzindo formas de conhecimento a partir da vivência baseada na subjetividade e na percepção dos fenômenos.
Na Geografia, a apropriação do método fenomenológico tem como desdobramento a interdisciplinaridade para a compreensão do espaço.
Para a fenomenologia compreender o espaço é considerar o vivido e o percebido inspirado na subjetividade da realidade, que faz com que a intuição se torne um elemento importante no processo do conhecimento, na qual a representação subjetiva do espaço por meio da percepção faz o homem recuperar o humanismo que trás significados e valores ao espaço vivido que é construído pela percepção e pelos indivíduos através das práticas sociais.

Caminhos de Geografia Uberlândia v. 11, n. 35 Set/2010 p. 173 - 178

domingo, 1 de setembro de 2013

TEORIA DA EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES



A Evolução é uma teoria, por que não uma lei natural?
A Teoria da Evolução das Espécies não é uma lei por não haverem provas cabais, apenas evidências científicas de forma que pode ser contestada a qualquer momento desde que surja uma prova de sua inoperância. É o fato de ser uma teoria e não uma lei que estimula a comunidade contrária (os criacionistas) a buscarem argumentos que refutem a teoria evolucionista. Compare com a lei da gravidade que é incontestável.
Contexto
Para compreensão da dimensão e polemica do evolucionismo, além de conhecer as peculiaridades dos indivíduos que o introduzem ao mundo científico, é necessário ressaltar que naquela época (fins do século XVIII e meados do século XIX), a Igreja ainda era muito influente, não só na Europa mas em todo o globo, levando a ciência a adaptar suas conquistas e descobertas aos dogmas cristãos que até hoje perdura (em menor intensidade, claro). Naqueles dias, confrontar tais dogmas cientificamente poderia custar o exílio ou mesmo a morte de quem se atrevesse a fazê-lo.
Lei do uso e desuso: o determinismo conforme Lamarck
Lamarck viveu a virada do século XVIII para o século XIX (1874-1829). Francês com origens na baixa nobreza, serviu ao exército e logo após, seu interesse por História Natural o levou a escrever uma obra com vários volumes sobre a flora da França. Por este motivo foi convidado a trabalhar no Museu de História Natural de Paris, onde após algum tempo, tornou-se curador dos invertebrados (termo que ele mesmo introduziu à Biologia). Tornou-se figura respeitada, difundindo suas ideias em inúmeras conferencias sobre o tema. Antes da virada do século, ainda acreditava que as espécies eram imutáveis. Foi somente em 1809 que publicou sua teoria da evolução, baseada em estudos realizados em moluscos.
Sua teoria fundamenta-se na tendência dos seres vivos a um “melhoramento genético” rumo a perfeição: segundo a lei do uso e desuso, os indivíduos perdem ao longo do tempo as características que são desnecessárias no meio em que vivem (desuso) e aprimoram as que mais utilizam (uso). O uso contínuo de um órgão ou parte do corpo faz com que este se desenvolva e seja apto para o correto funcionamento e, o desuso faz com que o mesmo se atrofie e com o tempo perca totalmente sua função no corpo do indivíduo. Estas mudanças seriam transmitidas aos seus descendentes através da transmissão das características adquiridas (teoria dos caracteres adquiridos).
Essa teoria é a confirmação do determinismo geográfico tal qual como conhecemos, não somente sobre o homem, mas sobre todos os organismos vivos. Como o ambiente terrestre sofre modificações constantes, suas alterações estruturais forçam os seres vivos que nele habitam a se transformarem para adaptação ao meio. Ao longo de muitos anos, o acúmulo das modificações, passado de geração em geração pode levar ao surgimento de novas espécies. Assim, modificações no ambiente causam alterações nas “necessidades”, no comportamento, na utilização e desenvolvimento dos órgãos. Assim sendo, transmutação das espécies ao longo do tempo: evolução.
No entanto, a teoria dos caracteres adquiridos foi completamente refutada. Provou-se que era falsa através de testes em ratos. A cauda dos animais era cortada continuamente ao longo das gerações e ainda assim, nenhum rato nasceu sem cauda. O mesmo princípio também poderia ser aplicado aos judeus circuncidados. Contudo, o próprio Lamarck já havia previsto que mutilações não se adequavam a teoria, somente as alterações impostas geneticamente a partir do uso e desuso e transmitidas pelos caracteres adquiridos.
Por este motivo, a contribuição de Lamarck chega a ser ofuscada na atualidade. Esquecendo-se da contribuição dele para a Biologia, principalmente de suas dificuldades como precursor de ideias e teorias que afrontavam diretamente os pressupostos da Igreja.
Darwin, um homem comum
Nascido em 1809 (você pode encontrar neste texto uma importante publicação lançada neste mesmo ano), neto de um dos mais influentes e ilustres intelectuais ingleses, Erasmus Darwin –médico, botânico e poeta – Darwin perdeu a mãe aos 8 anos de idade e sofria fortes pressões da Igreja, primeiramente através de seu pai e, mais tarde, na figura de sua esposa.
Foi mandado à Edimburgo para cursar medicina, mas Darwin mal aguentava ver sangue. Diante disso, por influencia do pai, dedicou-se a Igreja onde teve tempo para estudos de História Natural, sua verdadeira paixão e aptidão. Formou-se em 1931, em Cambridge.
Logo formado, um professor sugeriu seu nome para compor a tripulação do navio Beagle que faria o mapeamento de todos os portos do planeta. Junto ao Beagle, esteve no Brasil onde demonstrou todo o seu descontentamento com o regime escravista que vigorava naqueles dias. Cogita-se que tenha sido no Brasil que Darwin adquiriu a doença de chagas, responsável pela sua morte anos depois. A viagem a bordo do Beagle durou cinco anos e rendeu um vasto registro de dados e de amostras que o levaram a se perguntar o porque de tantas espécies diferentes e, ao mesmo tempo, o porque de tantas espécies semelhantes embora diferentes.
Darwin para a história da ciência
De volta a Inglaterra, percebeu que diversas espécies estudadas eram únicas, ou seja, só existiam no local onde as encontrara. Concomitante, aplicou-se nas obras de Malthus e a ideia de que o crescimento demográfico de uma população associado à baixa mortalidade, culminaria na escassez de alimentos que, por sua vez, ameaçaria a existência desta população. Isso poderia ser aplicado a toda e qualquer espécie viva, de forma que o equilíbrio da natureza somente seria possível se a maioria dos seres não vivesse o suficiente para se reproduzirem em massa. O que mantem esse equilíbrio, portanto, seria o ambiente que define qual indivíduo perpetua e qual sofrerá mutações ou extinção.
Eis a teoria da seleção natural. Um indivíduo chega pronto ao ambiente, se tiver características favoráveis para permanecer no local, ele se reproduz, caso contrário, será eliminado. É conforme o ambiente que as características de cada organismo serão consideradas favoráveis ou não à sobrevivência. O ambiente reage ao organismo determinando se ele permanece ali ou não. Os caracteres genéticos de adaptação ao ambiente são transmitidos via mutação (recombinação genética). Assim, a chave para a variação das espécies estava nas diferenças entre aqueles que conseguiam e os que não conseguiam se reproduzir: seleção natural, ou a grosso modo, a lei da sobrevivência do mais forte.
Em síntese...
Com isso, Darwin concluiu que todos os seres vivos, do mais sábio dos homens ao bacilo celular, podem ter sua linhagem ancestral traçada até o começo da vida sobre a terra. A diferença entre Darwin e os demais evolucionistas contemporâneos a ele é o fato de ter seguido o rigor cientifico necessário para a credibilidade de seus argumentos.
Outro ponto importante é que essa teoria não diz que o homem descende do macaco, mas que ambos possuem ancestrais primitivos em comum. Ou seja, que a linhagem humana é fruto de pressões evolutivas em ação por milhões de anos. Isso lhe rendeu a hostilidade da Igreja, porque, em outras palavras, ele estava dizendo que o homem nada tinha de divino ou incomum que o colocasse como superior às demais espécies do planeta.
As cinco teorias que sustentam Darwin
Evolução: O mundo vivo não foi criado nem se perpetuará da forma como é num determinado momento. Os organismos estão em um lento, porém constante, processo de mutação.
O ancestral comum: todo grupo de organismos descende de um ancestral comum, de uma simples e primitiva forma de vida, a ameba original. No caso do homem e do macaco, ambos tem um ancestral comum que data de aproximadamente 4 milhões de anos.
Multiplicação das espécies: as espécies vivas tendem a se diferenciar com o passar das eras. Foi Darwin quem esboçou a primeira árvore da vida em que as espécies “tronco” vão dando origem a outras espécies que correspondem aos “galhos”.
Gradualismo: As populações se diferenciam gradualmente, de geração em geração até que se tornem espécies diferentes.
Seleção Natural: É a base do darwinismo: os seres sofrem mutações genéticas que são transmitidas aos seus descendentes. Cada geração tem sua herança genética posta a prova pelas condições do ambiente em que vive. O processo evolutivo seleciona os animais e plantas cujas mutações são favorecidas pelo ambiente em que são obrigados a viver. Essas mutações ocorrem ao acaso (e não para “melhorar” a espécie conforme propôs Lamarck), não tendo nenhuma ligação com uma suposta “inteligência genética" que vise o aumento das chances de sobrevivência.
Nos dias atuais
Até hoje, apesar do empenho dos criacionistas, Darwin não foi contestado cientificamente, de forma que suas teorias mantém-se há mais de 150 anos. No início do século XX, teorias genéticas argumentaram que as mutações genéticas observadas em seus experimentos não poderiam ser chamadas de evolução, pois destas mutações se originavam retardamentos, membros atrofiados e deformados e similares. Mas o ponto não foi convertido em favor dos criacionistas graças a três neodarwinistas que isoladamente corroboraram as teorias de Darwin.
Ernest Mayr, George Gaylord Simpson e Theodosius Dobzhansky comprovaram, isoladamente que a seleção natural é valida a partir do isolamento da espécie em determinado ambiente e que o sucesso da mutação vai depender de onde o organismo vive, o que pode determinar sua evolução (no caso de adaptado ao meio, sua reprodução) ou sua extinção (processo que geralmente é gradual).
Comparativo
O pouco tempo que separou a publicação das duas teorias (1809 Lamarck e 1859 Darwin) é suficiente para mostrar o desenvolvimento da ciência.
Lamarck defendia a evolução e Darwin a descendência com modificação; Lamarck disse que as mutações ocorriam para aprimorar a espécie (um modo de dizer “por vontade de Deus”) e Darwin propôs que era aleatórias, via seleção natural; Lamarck incluiu o homem em sua cadeia evolutiva enquanto Darwin receou fazê-lo.
Ao longo de sua trajetória, Darwin fez diversas menções a Lamarck em suas obras sempre elogiando e enfatizando a sua contribuição para a ciência. Ele concordava com a teoria do uso e desuso e não foi responsável por refutar nenhuma das teorias de Lamarck.
Considerações Finais
Como observado no transcorrer do texto, não é possível abordar a Teoria da Evolução das Espécies sem mensurar minunciosamente a trajetória de Lamarck e Darwin.
Temos então, a Teoria da Evolução ou Evolucionismo amparada em três pilares:
- Determinismo geográfico: o meio atuando sobre os seres vivos (nota-se que aqui substituímos o termo “homens”) de forma a exterminar os não aptos a sobrevivência;
- Mutações aleatórias: enfatiza-se que essas mutações não são determinadas pelo meio e não são, via de regra, positivas para o organismo diante do cenário em que se encontra;

- Seleção natural: é aqui que o meio elimina os seres cuja mutação não os tornou aptos à sobrevivência e, perpetua (até que novos fatores intervenham na reprodução) as gerações daqueles que se adaptaram.

Fontes:
http://www.wikipedia.com

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

A GEOGRAFIA, ISSO SERVE, EM PRIMEIRO LUGAR, PARA FAZER A GUERRA - Fichamento

YVES LACOSTE

Uma disciplina simplória e enfadonha
            A geografia é, de início, um saber estratégico estreitamente ligado a um conjunto de práticas políticas e militares e são tais práticas que exigem o conjunto articulado de informações extremamente variadas, heteróclitas à primeira vista, das quais não se pode compreender a razão de ser e a importância, se não se enquadra no bem fundamentado das abordagens do Saber pelo Saber. São tais práticas estratégicas que fazem com que a geografia se torne necessária, ao Chefe Supremo, àqueles que são os donos dos aparelhos do Estado. Trata-se de fato de uma ciência? Pouco importa, em última análise: a questão não é essencial, desde que se tome consciência de que a articulação dos conhecimentos relativos ao espaço, que é a geografia, é um saber estratégico, um poder.
A geografia, enquanto descrição metodológica dos espaços, tanto sob os aspectos que se convencionou chamar "físicos", como sob suas características econômicas, sociais, demográficas, políticas (para nos referirmos a um certo corte do saber), deve absolutamente ser recolocada, como prática e como poder, no quadro das funções que exerce o aparelho de Estado, para o controle e a organização dos homens que povoam seu território e para a guerra.
Muito mais que uma série de estatísticas ou que um conjunto de escritos, a carta é a forma de representação geográfica por excelência; é sobre a carta que devem ser colocadas todas as informações necessárias para a elaboração de táticas e de estratégias. Tal formalização do espaço, que é a carta, não é nem gratuita, nem desinteressada: meio de dominação indispensável, de domínio do espaço, a carta foi, de início criada por oficiais e para os oficiais. A produção de uma carta, isto é, a conversão de um concreto mal conhecido em uma representação abstrata, eficaz, confiável, é uma operação difícil, longa e onerosa, que só pode ser realizada pelo aparelho de Estado e para ele. A confecção de uma carta implica num certo domínio político e matemático do espaço representado, e é um instrumento de poder sobre esse espaço e sobre as pessoas que ali vivem.
Mas a geografia não serve somente para sustentar, na onda de seus conceitos, qualquer tese política, indiscriminadamente. Na verdade, a função ideológica essencial do discurso da geografia escolar e universitária foi sobretudo a de mascarar por procedimentos que não são evidentes, a utilidade prática da análise do espaço, sobretudo para a condução da guerra, como ainda para a organização do Estado e prática do poder. E sobretudo quando ele parece "inútil" que o discurso geográfico exerce a função mistificadora mais eficaz, pois a crítica de seus objetivos "neutros" e "inocentes" parece supérflua. A sutileza foi a de ter passado um saber estratégico militar e político como se fosse um discurso pedagógico ou científico perfeitamente inofensivo. Nós veremos que as conseqüências desta mistificação são graves. E o porquê de ser particularmente importante afirmar que a geografia serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, isto é, desmascarar uma de suas funções estratégicas essenciais e desmontar os subterfúgios que a fazem passar por simplória e inútil.
(...) A rigor, os geógrafos universitários consentem em evocar, da boca para fora, o papel de uma espécie de "geografia primitiva" (Alain Reynaud) na época em que o saber estabelecido pela geografia do rei estava destinado não aos jovens alunos ou a seus futuros professores, mas aos chefes de guerra e àqueles que dirigem o Estado.
A geografia existe desde que existem os aparelhos de Estado, desde Heródoto (...).
Desde essa época, a geografia dos oficiais, para se fazer discreta, não deixa contudo de existir com um pessoal especializado, cujo número não é desprezível, com seus meios que se tornaram consideráveis (os satélites), seus métodos, e ela continua a ser como há séculos, um temível instrumento de poder. Esse conjunto de representações cartográficas e de conhecimentos bem variados, visto em sua relação com o espaço terrestre e nas diferentes formas de práticas do poder, forma um saber claramente percebido como estratégico por uma minoria dirigente, que a utiliza como instrumento de poder. À geografia dos oficiais decidindo com o auxílio das cartas a sua tática e a sua estratégia, à geografia dos dirigentes do aparelho de Estado, estruturando o seu espaço em províncias, departamentos, distritos, à geografia dos exploradores (oficiais, freqüentemente) que prepararam a conquista colonial e a "valorização" se anexou a geografia dos estados-maiores das grandes firmas e dos grandes bancos que decidem sobre a localização de seus investimentos em plano regional, nacional e internacional, Essas diferentes análises geográficas, estreitamente ligadas a práticas militares, políticas, financeiras, formam aquilo que se pode chamar "a geografia dos estados-maiores", desde os das forças armadas até os dos grandes aparelhos capitalistas.
Mas essa geografia dos estados-maiores é quase completamente ignorada por todos aqueles que não a executam, pois suas informações permanecem confidenciais ou secretas.
Hoje, mais do que nunca, a geografia serve, antes de tudo, para fazer a guerra. A maioria dos geógrafos universitários imagina que, após a confecção de cartas relativamente precisas para todos os países, para todas as regiões, os militares não têm mais necessidade de recorrer a este saber que é a geografia, aos conhecimentos disparatados que ela reúne (relevo, clima, vegetação, rios, repartição da população, etc.). Nada é mais falso. Primeiro porque as "coisas" se transformam rapidamente: se a topografia só evolui muito lentamente, a implantação das instalações industriais, o traçado das vias de circulação, as formas do habitat se modificam a um único ritmo bem mais rápido e é preciso levar em consideração essas transformações para estabelecer as táticas e as estratégias.
De outro lado, a elaboração de novos métodos de guerra implica numa  análise bem precisa das combinações geográficas, das relações entre os homens e as "condições naturais" que se trata justamente de destruir ou modificar para tornar tal região imprópria à vida, ou para encetar um genocídio.
Em nossos dias, a abundância de discursos que se referem ao "amenagement" do território em termos de harmonia, de melhores equilíbrio a serem encontrados. serve sobretudo para mascarar as medidas que permitem às empresas capitalistas, sobretudo às mais poderosas aumentar seus benefícios. É preciso perceber que o "amenagement " do território não tem como único objetivo o de maximizar o lucro mas também o de organizar estrategicamente o espaço econômico, social e político, de tal forma que o aparelho de Estado possa estar em condições de abafar os movimentos populares. Se isto é bem pouco nítido nos países há muito industrializados, os planos de organização do espaço são manifestamente bastante influenciados pelas preocupações policiais e militares nos Estados em que a industrialização é um fenômeno recente e rápido.

Da Geografia dos professores aos écrans da Geografia espetáculo
Desde o fim do século XIX pode-se considerar que existem duas geografias:
- Uma, de origem antiga, a geografia dos Estados-maiores, é um conjunto de representações cartográficas e de conhecimento variados de representações cartográficas e de conhecimento variados referentes ao espaço; esse saber sincrético é claramente percebido como eminentemente estratégico pelas minorias dirigentes que o utilizam como instrumento de poder.
- A outra geografia, a dos professores, que apareceu há menos de um século, se tornou um discurso ideológico no qual uma das funções inconscientes, é a de mascarar a importância estratégica dos raciocínios centrados no espaço. Não somente essa geografia dos professores é extirpada de práticas políticas e militares como de decisões econômicas (pois os professores nisso não tem participação), mas ela dissimula, aos olhos da maioria, a eficácia dos instrumentos de poder que são as análises espaciais. Por causa disso a minoria no poder tem consciência de sua importância, é a única a utilizá-las em função dos seus próprios interesses e este monopólio do saber é bem mais eficaz porque a maioria não dá nenhuma atenção a uma disciplina que lhe parece tão perfeitamente “inútil”.
Desde o fim do século XIX, primeiro na Alemanha e depois sobretudo na França, a geografia dos professores se desdobrou como discurso pedagógico de tipo enciclopédico, como discurso científico, enumeração de elementos de conhecimento mais ou menos ligados entre si pelos diversos tipos de raciocínios, que têm todos um ponto comum: mascarar sua utilidade prática na conduta da guerra ou na organização do Estado.
A ideologia do turismo faz da geografia uma das formas de consumo de massa: multidões cada vez mais numerosas são tomadas por uma verdadeira vertigem faminta de paisagens, fontes de emoções estéticas, mais ou menos codificadas. A carta, representação formalizada do espaço que somente alguns sabem interpretar e sabem utilizar como instrumento de poder, é largamente eclipsada no espírito de todos pela fotografia da paisagem. Esta última, segundo os "pontos de vista" e de acordo com as distâncias focais das lentes das objetivas, escamoteia as superfícies, as distâncias da carta, para privilegiar silhuetas topográficas verticais que se recortam, em diorama, sobre fundo de céu. É todo um condicionamento cultural, toda uma impregnação que incita tanto que nós achamos belas paisagens às quais não se prestava nenhuma atenção antes.
Um saber estratégico na mão de alguns
Em contrapartida, em numerosos Estados, a geografia é claramente percebida como um saber estratégico e os mapas, assim como a documentação estatística, que dá uma representação precisa do país, são reservados à minoria dirigente.
Esse confisco dos conhecimentos geográficos é essencialmente devido a problemas de política interna.
Após várias experiências desastrosas, o aprendizado da leitura de cartas aparece como tarefa prioritária para os militantes, num grande número de países. No entanto, na maioria dos países de regime democrático, a difusão de cartas, em qualquer escala, é completamente livre, assim como a dos planos da cidade. As autoridades perceberam que poderiam colocá-las em circulação, sem inconveniente. Cartas, para quem não aprendeu a lê-Ias e utilizá-las, sem dúvida, não têm qualquer sentido, como não teria uma pagina escrita para quem não aprendeu a ler. Não que o aprendizado da leitura de uma carta seja uma tarefa difícil, mas é ainda preciso que se veja o interesse em práticas políticas e militares: a livre circulação das cartas nos países de regime liberal é o corolário do pequeno número daqueles que podem pretender investir contra os poderes estabelecidos, em lugar de outros tipos de ação diversos daqueles convencionados num sistema democrático.
(...)O sistema das multinacionais é, sem dúvida, bem analisado, mas somente no plano teórico: uma análise geográfica precisa dos múltiplos pontos controlados por essas organizações tentaculares não é impossível de ser feita e isso permitiria dirigir contra elas, ações imbricadas, denunciar bem mais eficazmente suas condutas concretas (sempre aperfeiçoando a teoria)- o saber geográfico não deve permanecer como apanágio dos dirigentes de grandes bancos; ele pode ser voltado contra eles, na condição de prestar atenção às formas de localização dos fenômenos e cessar de evocá-los abstratamente.
Numa outra escala, a dos problemas que se colocam na cidade, é surpreendente constatar a que ponto os habitantes (e mesmo os mais preparados politicamente) se acham incapacitados de prever as conseqüências desastrosas que acarretarão tal plano de urbanismo, tal empresa de renovação, que no entanto lhes concerne diretamente. As municipalidades, os promotores estão agora tão conscientes desta incapacidade que eles não hesitam mais em praticar o "acordo" e de apresentar os planos dos futuros trabalhos, pois as objeções são raras e fáceis de iludir. Deveras, as representações espaciais só têm verdadeiro significado para aqueles que as sabem ler, e esses são raros; dessa forma, as pessoas não irão perceber até que ponto foram enganadas, se não após o término dos trabalhos, quando as modificações se tomarem irreversíveis, em boa parte.

Miopia e sonambulismo no seio de uma espacialidade tornada diferencial
É preciso, de início, fazer referências ao conjunto das práticas sociais e às diversas representações de espaços que lhe são ligadas.
Outrora, na época em que a maioria dos homens vivia ainda para o essencial, no quadro da autossubsistência aldeã, a quase totalidade de suas práticas se inscrevia, para cada um deles, no quadro de um único espaço, relativamente limitado: o "terroir”* da aldeia e, na periferia, os territórios que relevam das aldeias vizinhas. Além, começavam os espaços pouco conhecidos, desconhecidos, míticos. Para se expressarem e falar de suas práticas diversas, os homens se referiam, portanto, antigamente, à representação de um espaço único que eles conheciam bem concretamente, por experiência pessoal.
Mas, desde há muito, os chefes de guerra, os príncipes, sentiram necessidade de representar outros espaços, consideravelmente mais vastos, os territórios que eles dominavam ou que queriam dominar; os mercadores, também, precisam conhecer as estradas, as distâncias, em regiões distantes onde eles
comercializavam com outros homens.
Para esses espaços muito vastos ou dificilmente acessíveis, a experiência pessoal, o olhar e a lembrança não eram mais suficientes. É então que o papel do geógrafo-cartógrafo se toma essencial: ele representa, em diferentes escalas, territórios mais ou menos extensos; a partir das "grandes descobertas", poder-se-á representar a terra inteira num só mapa em escala bem e este será, durante muito tempo, o orgulho dos soberanos que o detêm. Durante séculos, só os membros das classes dirigentes puderam apreender, pelo pensamento, espaços bastante amplos pata tê-los sob suas vistas e essas representações do espaço eram um instrumento essencial da prática do poder sobre territórios e homens mais ou menos distantes. O imperador deve ter uma representação global e precisa do império, de suas estruturas espaciais internas (províncias) e dos Estados que o contornam - é uma carta em escala pequena que é necessária. Em contrapartida, para tratar problemas que se colocam nesta ou naquela província, precisam de uma carta em escala maior, a fim de poder dar ordens a distância, com uma relativa precisão. Mas para a massa dos homens dominados, a representação do império é mítica e a única visão clara e eficaz é a do território aldeão.
As pessoas, cada vez mais diferenciadas profissionalmente, são individualmente integradas (sem que elas tomem claramente conhecimento disso) em múltiplas teias de relações sociais que funcionam sobre distâncias mais ou menos amplas (relações de patrão e empregados, vendedor e consumidores, administrador e administrados...). Os organizadores e os responsáveis por cada uma dessas redes, isto é, aqueles que detêm os poderes administrativos e financeiros, têm uma idéia precisa de sua extensão e de sua configuração; quando um industrial ou um comerciante não conhece bem a extensão de seu mercado, ele manda fazer, para ser mais eficaz, um estudo onde será possível distinguir a influência que ele exerce (e a que ele pode ter) a nível local, regional, nacional, levando em consideração as posições de seus concorrentes.
Hoje, só se conhecem bem dois lugares, dois bairros (aquele onde se dorme e aquele onde se trabalha); entre os dois existe, para as pessoas, não exatamente todo um espaço (ele permanece desconhecido, sobretudo se é atravessado dentro de um túnel de metrô), mas, melhor dizendo, um tempo, o tempo de percurso, pontuado pela enumeração dos nomes de estações.
(...) De fato, as diversas práticas sociais têm, cada qual, uma configuração espacial particular. Chega-se assim à uma superposição de conjuntos espaciais que se interceptam uns os outros.
As práticas sociais se tomaram mais ou menos confusamente multi-escalares. No passado vivia-se totalmente num mesmo lugar, num espaço limitado, mas bem conhecido e contínuo. Hoje, nossos diferentes "papéis" se inscrevem cada um em migalhas de espaço, entre os quais nós olhamos sobretudo nossos relógios, quando nos fazem passar, a cada dia, de um a outro papel. Se os sonâmbulos se deslocam sem saber por que num lugar que eles conhecem, nós não sabemos onde estamos nos diversos locais onde temos algo a fazer. Vivemos, a partir do momento atual, numa espacialidade diferencial2 feita de uma multiplicidade de representações espaciais, de dimensões muito diversas, que correspondem a toda uma série de práticas e de ideias mais ou menos dissociadas.
O desenvolvimento desse processo de especialidade diferencial se traduz por essa proliferação das representações espaciais, pela multiplicação das preocupações concernentes ao espaço (nem que seja por causa da multiplicação dos deslocamentos). Mas esse espaço do qual todo mundo fala, ao qual nos referimos todo tempo, é cada vez mais difícil de apreender globalmente para se perceber suas relações com uma prática global.
É sem dúvida uma das razões prioritárias pelas quais os problemas políticos são tão raramente colocados em função de espaço por aqueles que não estão no poder. De fato, os problemas políticos correspondem a toda uma gama de redes de domínio que possuem configurações espaciais bem diversas e que se exercem sobre espaços mais ou menos consideráveis (desde o nível da aldeia e do cantão, até a dimensão planetária).
Para se reconhecer bem facilmente nesse emaranhado, em boa parte constituído de informações confidenciais, para estar em condições de utilizá-los com eficiência, não é preciso ser um gênio; é preciso, sobretudo, fazer parte do grupo no poder e ter a sustentação das classes dominantes.

A Geografia escolar que ignora toda a prática teve, de início, a tarefa de mostrar a pátria
(...) O desenvolvimento do processo de espacialidade diferencial acarretará, necessariamente, cedo ou tarde a evolução a nível coletivo de um saber pensar o espaço, isto é, a familiarização de cada um com um instrumento conceitual que permite articular, em função de diversas práticas, as múltiplas representações espaciais que é conveniente distinguir, quaisquer que sejam sua configuração e sua escala, de maneira a dispor de um instrumental de ação e de reflexão. Isso é que deveria ser a razão de existir da geografia.
E torna-se indispensável que os homens saibam pensar o espaço.
Vai-se à escola para aprender a ler, a escrever e a contar. Por que não para aprender a ler uma carta? Por que não para compreender a diferença entre uma carta em grande escala e uma outra em pequena escala e se perceber que não há nisso apenas uma diferença de relação matemática com a realidade, mas que elas não mostram as mesmas coisas? Por que não aprender a esboçar o plano da aldeia ou do bairro? Por que não representam sobre o plano de sua cidade os diferentes bairros que conhecem, aquele onde vivem, aquele onde os pais das crianças vão trabalhar, etc.? Por que não aprender a se orientar, a passear na floresta, na montanha, a escolher determinado itinerário para evitar uma rodovia que está congestionada?
O discurso geográfico escolar que foi imposto a todos no fim do século XIX e cujo modelo continua a ser reproduzido hoje, quaisquer que pudessem ter sido, aliás, os progressos na produção de idéias científicas, se mutilou totalmente de toda prática e, sobretudo, foi interditada qualquer aplicação prática. De todas as disciplinas ensinadas na escola, no secundário, a geografia, ainda hoje, é a única a aparecer, por excelência, como um saber sem a menor aplicação prática fora do sistema de ensino. Nenhuma esperança de que o mapa possa aparecer como uma ferramenta, como um instrumento abstrato do qual é preciso conhecer o código para poder compreender pessoalmente o espaço e nele se orientar ou admiti-lo em função de uma prática. Nem se pensar que a carta possa aparecer como um instrumento de poder que cada qual pode utilizar se sabe interpretá-la. A carta deve permanecer como prerrogativa do oficial, e a autoridade que ele exerce em operação sobre "seus homens" não se deve somente ao sistema hierárquico, mas ao fato de que ele só é quem sabe ler a carta e pode decidir os movimentos, enquanto aqueles que ele mantém sob suas ordens não o sabem.
Provavelmente esse corte radical que o discurso geográfico escolar e universitário estabelece em face de toda prática, essa ocultação de todas as análises do espaço, na grande escala, que é o primeiro passo para apreender cartograficamente a "realidade", resulta, em boa parte, da preocupação, inconsciente, de não se renunciar a uma espécie de encantamento patriótico, de não arriscar o confronto da ideologia nacional com as contradições das realidades.

A colocação de um poderoso conceito obstáculo: a região personagem
Com seu Quadro da geografia da França (1905), modelo tantas vezes retomado por tantas teses, cursos e manuais ou com os quinze tomos da Geografia universal (A. Colin) cuja concepção ele influenciou, Vidal de La Blache introduziu a idéia das descrições regionais aprofundadas, que são consideradas a forma, a mais fina, do pensamento geográfico. Ele mostra como as paisagens de uma "região" são o resultado da superposição ao longo da história, das influências humanas e dos dados naturais. Mas em suas descrições, Vidal dá maior destaque para as permanências, a tudo aquilo que é herança duradoura dos fenômenos naturais ou de evoluções históricas antigas. Em contrapartida, ele baniu, em suas descrições, tudo que decorre da evolução econômica e social recente, de fato, tudo o que tinha menos de um século e traduzia os efeitos da "revolução industrial". Claro, Vidal de La Blache combateu a tese "determinista", segundo a qual os "dados naturais" (ou um deles) exercem uma influência direta e determinante sobre os "fatos humanos" e ele dá um papel capital à história para avaliar as diversas maneiras pelas quais os homens estão em relação com os "fatos físicos".
(...) Após Vidal, que levantou o plano de uma volumosa Geografia Universal, a descrição geográfica de qualquer país, que seus discípulos irão realizar, consistirá em apresentar as diferentes "regiões que o compõem" e a descrevê-las, umas após as outras. Esse método, que não provocou críticas, conheceu um sucesso considerável no mundo inteiro e fez o renome da escola geográfica francesa. A geografia regional é imposta como a "geografia por excelência": não associaria a ela, estreitamente, a um só tempo, a "geografia física" e a "geografia humana"? Esse procedimento da geografia regional consiste em constatar como evidência a existência, num país, de um certo número de regiões e descrevê-las, umas após as outras, ou a analisar somente uma delas no seu relevo, seu clima, sua vegetação, sua população, suas cidades, sua agricultura, sua indústria, etc., cada uma considerada como um conjunto contendo outras regiões menores. Esse procedimento impregna, hoje, todo o discurso sobre a sociedade, toda a reflexão econômica, social e política, quer ela proceda de uma ideologia "de direita" ou "de esquerda". É um dos obstáculos capitais que impedem de colocar os problemas da especialidade diferencial, pois admite-se, sem discussão, que só existe uma forma de dividir o espaço.
É de fato, um subterfúgio particularmente eficaz, pois ele impede de apreender eficazmente as características espaciais dos diferentes fenômenos econômicos, sociais e políticos. De fato, cada um deles tem uma configuração geográfica particular que não corresponde à da "região".
Fruto do pensamento vidaliano, a "região geográfica", considerada a representação espacial, senão única, ao menos fundamental, entidade resultante, pode-se dizer, da síntese harmoniosa e das heranças históricas, se tornou um poderoso conceito-obstáculo que impediu a consideração de outras representações espaciais e o exame de suas relações.
A consagração pelos geógrafos da região-personalidade, organismo coletivo ou mininação da região-personagem histórica, forneceu a garantia, a própria base, de todos os geografismos que proliferam no discurso político.
Enquanto seria politicamente mais sadio e mais eficaz considerar a região como uma forma espacial de organização política (etimologicamente, região vem de regere, isto é, dominar, reger), os geógrafos acreditam na ideia de que a região é um dado quase eterno, produto da geologia e da história. Os geógrafos, de algum modo, acabaram por naturalizar a ideias de região: não falam eles das regiões calcárias, de regiões gramíticas, de regiões frias, de regiões florestais? Eles utilizam a noção de região, que é fundamentalmente política, para designar todas as espécies de conjuntos espaciais, quer sejam topográficos, geológicos, climáticos, botânicos, demográficos, econômicos ou culturais.

As intersecções de múltiplos conjuntos espaciais
Basta folhear um Atlas ou um Manual consagrado a um mesmo continente, a um mesmo Estado o a uma porção qualquer do espaço terrestre, para se perceber que as configurações espaciais dos fenômenos geológicos, climáticos, demográficos, econômicos, culturais não coincidem uns com os outros, na maioria dos casos; ao contrário, elas formam uma série de interseções complexas.
Uma das razões de ser fundamentais da geografia é a de tomar conhecimento da complexidade das configurações do espaço terrestre. Os fenômenos que se podem isolar pelo pensamento, segundo as diferentes categorias científicas (geologia, climatologia, demografia, economia, etc.), não se ordenam espacialmente segundo grandes compartimentos, as regiões sobre as quais os professores de geografia proclamam a realidade, mas ao contrário se superpõem, e freqüentemente de maneira bastante complicada. É levando em consideração essas múltiplas interseções entre as configurações precisas dos diferentes fenômenos, que se pode agir mais eficazmente, pois isso permite evitar, por exemplo, aquelas que constituem obstáculo à ação que se quer empreender. No coração de uma mesma "região", lugares vizinhos e aparentemente idênticos podem, na realidade, oferecer condições bem diversas, e é o exame das configurações espaciais precisas de diferentes fenômenos que permite escolher a implantação (ou o itinerário) mais vantajosa.
A diversidade da realidade, na superfície do globo, não é somente a que descreve o geólogo ou a que analisa o economista: é a combinação de todas essas representações parciais que permite tomar conhecimento dela, da forma a menos imperfeita.
(...) Mas o sucesso da idéia de "região" traz em si também poderosas razões ideológicas que estão ligadas ao sentimento nacional: cada Estado, cada "país" é quase como se fosse a reunião de um certo número de "regiões". Cada "região", descrita como uma entidade viva muito antiga, senão eterna, aparece como um dos órgãos do corpo da pátria. A idéia de "região", a idéia de que só há uma forma de se conceber a repartição de um espaço e, em última análise, a idéia de que o espaço é compartimentado pela Natureza, por Deus, de acordo com linhas simples e estáveis, traduz o poderio ideológico da geografia dos professores. Mas essas representações tranqüilizantes, que são o fundamento de tantos discursos e rompantes líricos, não são operacionais. Desde que não se trate mais de discursos ou de manuais escolares, mas de ação, é preciso entender, para não fracassar, que as configurações do espaço são bem mais complexas que a repartição simples em grandes "regiões" da geografia dos professores.

O escamoteamento de um problema capital: a diferenciação dos níveis de análise espacial
Para a maioria dos geógrafos, a dimensão do território levado em consideração e os critérios dessa escolha, não parecem dever influenciar fundamentalmente suas observações e seus raciocínios. Contudo, basta folhear um manual de geografia ou a coleção de uma revista geográfica para se perceber que as ilustrações cartográficas são de tipos extremamente diferentes, pois essas cartas têm escalas muito desiguais.
Entre todas essas cartas de escala tão desigual, não há somente diferenças quantitativas, de acordo com o tamanho do espaço representado, mas também diferenças qualitativas, pois um fenômeno só pode ser representado numa determinada escala; em outras escalas ele não é representável ou seu significado é modificado. É um problema essencial, mas difícil.

A realidade aparece diferente segundo a escala das cartas, segundo os níveis de análise
Como certos fenômenos não podem ser apreendidos se não considerarmos extensões grandes, enquanto outros, de natureza bem diversa, só podem ser captados por observações muito precisas sobre superfícies bem reduzidas, resulta daí que a operação intelectual, que é a mudança de escala, transforma, e às vezes de forma radical, a problemática que se pode estabelecer e os raciocínios que se possa formar. A mudança da escala corresponde a uma mudança do nível da conceituação.

Uma etapa primordial no caminho da investigação geográfica: a escolha dos diferentes espaços de conceituação
Ao plano do conhecimento não há nível de análise privilegiado, nenhum deles é suficiente, pois o fato de se considerar tal espaço como campo de observação irá permitir apreender certos fenômenos e certas estruturas, mas vai acarretar a deformação ou a ocultação de outros fenômenos e de outras estruturas, das quais não se pode, a priori, prejulgar o papel e, portanto, não se pode negligenciar. É por isso indispensável que nos coloquemos em outros níveis de análise, levando em consideração outros espaços. Em seguida é necessário, realizar a articulação dessas representações tão diferentes, pois elas são função daquilo que se poderia chamar espaço de conceituação diferente.
No plano, não mais do conhecimento, mas da ação (urbanística ou militar), existem níveis de análise que é preciso privilegiar, pois eles correspondem a espaços operacionais, em decorrência das estratégias e das táticas elaboradas.
O problema das escalas é portanto primordial para o raciocínio geográfico. Contrariamente a certos geógrafos que declaram que "se pode estudar um mesmo fenômeno em escalas diferentes", é preciso estar consciente que são fenômenos diferentes porque eles são apreendidos em diferentes níveis de análise espacial.
Os diferentes espaços de conceituação, aos quais precisa se referir o geógrafo, devem ser objeto de um esforço de diferenciação e de articulação sistemáticos.

As diferentes ordens de grandeza e os diferentes níveis da análise espacial
A articulação dos diferentes níveis de análise, portanto, interseções de conjuntos espaciais de muitas diversas categorias científicas é, na realidade, um raciocínio de tipo estratégico; sua adequação e seus erros são sancionados pela vitória ou pela derrota em face das finalidades que nos propúnhamos atingir, ele corresponde à articulação daquilo que se chama, em todos os exércitos, a estratégia e a tática (há, aliás diferentes níveis estratégicos e diferentes níveis táticos que correspondem às diferentes ordens de grandeza de conjuntos espaciais). Mas esse expediente operacional, ao qual devem ser afeitos os oficiais do estado-maior, não se limita ao domínio dos militares. Ele é eficaz, indispensável mesmo, em muitos outros domínios - na verdade, para todos os tipos de reflexões e empreendimentos, desde que precisem considerar o espaço, o que acontece com a maioria das ações humanas.
A distinção sistemática de diferentes níveis de análise espacial é um instrumental conceitual relativamente simples, que pode ajudar cada qual a até ver mais claro, a melhor compreender o que se passa. Mas se trata de intervir numa situação local, para modificá-Ia, e sobretudo se os objetivos são complexos, a articulação desses diferentes níveis de análise é um procedimento difícil, arriscado e seria perigoso fazer acreditar que qualquer um pode se improvisar como estrategista e geógrafo. Trata-se, com efeito, de levar em consideração um grande número de fatores geológicos, climáticos, pedológicos, demográficos, sociais, econômicos, políticos, culturais que são trunfos, obstáculos, handicaps e que se misturam de forma tanto mais complicada por terem, cada um, sua própria configuração espacial.

As estranhas carências epistemológicas da Geografia universitária
Enquanto em outras disciplinas é, desde há muito, julgado indispensável definir uma problemática, os geógrafos continuaram a fazer como se eles só tivessem que ler, sem problemas, "o grande livro aberto da natureza".
Em suma, a maior parte dos geógrafos teoriza o menos possível, e se contenta em afirmar, sem pejo, que "a geografia é a ciência da síntese", chegando a convir, às vezes, que a "geografia não pode se definir, nem por seu objetivo, nem por seus métodos, mas sobretudo por seu ponto de vista1”. Tais declarações traduzem, a um só tempo, um desconhecimento real das características não menos sintéticas das disciplinas às quais recorrem os geógrafos, seu isolamento (pois tais propósitos - deveriam ter provocado uma indignação) e sua pequena preocupação com problemas teóricos, mesmo os mais fundamentais, que deveriam abordar todas as ciências e há muito tempo. Aliás, numerosos geógrafos não escondem suas prevenções com respeito às “considerações abstratas" (especialmente às dos economistas, sociólogos) e acham uma glória a sua predileção pelo "concreto". Alguns deles não  proclamaram "a geografia, ciência do concreto" sem ter dúvidas sobre os sorrisos que uma tal  declaração não deixará de provocar, ao menos quando ela é conhecida fora do meio dos geógrafos, o que não é, finalmente, bastante raro? Mas sumárias como possam ser, essas declarações "epistemológicas" que procedem de mestres no final de suas carreiras, têm sido relativamente raras até esses últimos anos e os geógrafos, só de quando em quando, se perguntam o que pode ser a geografia. Um deles2, e não dos menos ilustres, diante dos seus colegas reunidos em colóquio, caracterizou a geografia como "um espírito terra-a-terra".
Foi apenas de alguns anos para cá que um certo número de geógrafos começou a tomar consciência dos problemas que coloca a geografia. Disso resultou uma seqüência de reflexões sobre sua disciplina, mas todas camuflaram, até agora, o papel da geografia como instrumento do poder político e militar.

Uma prática universitária que é, cada vez mais, a negação do projeto global
Já não é sem interesse constatar que se faz silêncio sobre a geografia, embora o estatuto que lhe atribuem os geógrafos coloque em causa, implicitamente, na organização geral dos conhecimentos. Mas esse silêncio aparece ainda como mais surpreendente, quando se atenta a isso que é a evidência: enquanto eles propalam, quase unanimemente, que a razão de ser da geografia é o estudo das interações entre “fatos físicos" e "fatos humanos", em sua prática os geógrafos parecem se preocupar muito pouco com essas interações: uns só se Preocupam com a "geografia física" (esta acaba por constituir o essencial da disciplina, em certos sistemas de ensino, como o da URSS, Por exemplo), enquanto outros se ocupam essencialmente com a “geografia humana". A prática da maioria dos geógrafos aparece, portanto, como a negação dos princípios que eles afirmam.
Claro, existe a "geografia regional", esse terceiro pedaço resultante da divisão oficializada da geografia. Essa geografia regional, que é encarregada de manter "a unidade" da geografia, reúne, a propósito desta ou daquela parte do espaço terrestre, elementos diversos que são extraídos do discurso do geólogo, do climatólogo, do técnico em hidráulica, do botânico, etc., como também do demógrafo, do etnólogo, do economista e do sociólogo. A diversidade desses empréstimos é habitualmente considerada a prova de um expediente que apreenderia efetivamente as interações entre fenômenos estudados, especificamente, por diversos especialistas.
Essa ruptura entre "geografia física" e "geografia humana", que se manifesta ainda com maior fracionamento no discurso enciclopédico da "geografia regional", essa negação na prática do ensino e da pesquisa do projeto que pretendem perseguir os geógrafos, não só traduz as dificuldades reais de sua empreitada, mas também, e sobretudo, sua desconfiança, ou até sua recusa, em relação à toda reflexão epistemológica. Da mesma forma que pretendem apreender diretamente aquilo que chamam, de uma forma bem sintomática, de os "dados" geográficos, sem se importar com os pressupostos de suas observações, confundindo assim o objeto real e o objeto de conhecimento, os geógrafos também consideram que os diversos elementos que eles extraem do discurso dos diferentes especialistas são simples "dados". No entanto, o geólogo, o climatólogo, o botânico, o demógrafo, o economista, o sociólogo, dos quais a geografia utiliza uma parte dos trabalhos, colocaram cada um deles em utilização, um método e um instrumental conceitual que são específicos de uma ciência particular, cujos objetivos não são os da geografia. O geógrafo, que não se preocupa muito com a construção dos conceitos e que emprega constantemente noções extremamente vagas (região, país ...); utiliza as produções das outras disciplinas sem questionar as mesmas, da mesma forma que não coloca questões a propósito da geografia.

Ausência de polêmica entre geógrafos: ausência de vigilância a respeito da Geografia
A transformação de um saber, que foi explicitamente político, num discurso que nega seu significado político, que aceita renunciar à eficiência e que se amputou das ciências sociais, pode parecer uma operação impossível de se realizar, ao menos sem polêmicas muito violentas. Elas não se manifestam nunca.
Contudo, essa carência epistemológica dos geógrafos, não pode ser explicada somente pelo mecanismo de reprodução das idéias dos mestres no sistema universitário, nem pelo caráter mais fortemente mistificador de sua posição teórica.
O sistema universitário não impediu as polêmicas em outras disciplinas. Em geografia, conflitos de pessoas, sim, mas nada de problemas (ou quase nada ... ). Assim, quando após 1950 um geógrafo como Pierre George começou a estabelecer pontes com a sociologia e a economia, encetou o estudo dos fenômenos industriais e urbanos que estavam ocultos desde Vidal e, "pior ainda", poderíamos dizer, mostrou a importância da distinção entre países capitalistas e países socialistas, essa orientação que ia, no entanto, radicalmente contra a geografia vidaliana, suscitou muitas rusgas de corredor, mas nenhum debate teórico.
(...) Durante muito tempo, os geógrafos se preocuparam, quase que exclusivamente, com o "habitat" rural e com a agricultura (influência do clima). As cidades não eram lembradas senão por sua relação com seu sítio topográfico original e sua situação, em face dos principais contrastes de relevo da região circundante ignorada, ao menos reduzida à enumeração de localizações dos centros industriais, em função das jazidas de matérias-primas.
Essa falta de vigilância em relação à geografia é tanto mais chocante quanto se utiliza cada vez mais sua linguagem, não somente na mídia, mas também nas numerosas disciplinas científicas. Todo o mundo fala de "país", de "regiões" sem tomar o menor cuidado com o caráter tão etéreo dessas noções elásticas e escorregadias, e com as conseqüências desagradáveis que podem advir de sua utilização, para o rigor do raciocínio. Se notarmos bem, é chocante constatar, com que ingenuidade, com que falta de espírito crítico, o historiador, o economista e o sociólogo utilizam os argumentos geográficos nos seus próprios discursos: evocados, aliás, não sem alguma condescendência, os "dados geográficos" são aceitos sem a menor discussão, como se não tivessem senão de se inclinar diante dos "imperativos geográficos". Ora, os "dados" geográficos não são fornecidos por Deus, mas por um tal geógrafo que, não contente de os ter apreendido a uma determinada escala, os escolheu e os classificou numa certa ordem; um outro geógrafo, estudando a mesma região ou abordando o mesmo problema numa outra escala, forneceria, provavelmente, "dados" bem diferentes. Quanto aos famosos "imperativos" geográficos, dos quais os economistas, por exemplo, são tão ávidos, os geógrafos sabem sem dúvida (especialmente desde Vidal de La Blache, o que foi uma das aquisições mais positivas) que os homens neles se acomodam de modo bem diferente, e que aí não há o mínimo "determinismo" estrito, mas bem ao contrário, um "possibilismo".
(...) A conduta dos geógrafos não teria permanecido o que ainda é hoje se ela tivesse sido objeto de polêmicas e de debates.
Durante séculos, até o fim do XIX, antes de aparecer o discurso geográfico universitário, a geografia era unanimemente percebida como um saber explicitamente político, um conjunto de conhecimentos variados indispensável aos dirigentes do aparelho de Estado, não somente para decidir sobre a organização espacial deste, mas também para preparar e conduzir as operações militares e coloniais, conduzir a diplomacia e justificar suas ambições territoriais. Contudo, a partir de Vidal de La Blache, fundador da escola geográfica francesa, e a partir do Quadro da geografia da França (1905), imediatamente considerada como um modelo de descrição e de raciocínio geográficos, o discurso dos geógrafos universitários (é o que, desde então, se chama "geografia") vai excluir toda referência ao político e mesmo a tudo aquilo que faz pensar nisso - a ponto de terem sido "esquecidas", durante muitos decênios, as cidades e a indústria. Desde os anos cinqüenta, os geógrafos - ao menos aqueles que se limitam à geografia humana - se preocupam com fenômenos econômicos e sociais, a ponto de alguns deles confundirem sua disciplina com a economia, com a sociologia e desejarem ver a geografia se fundir no conjunto das ciências sociais. Mas, para a quase totalidade dos geógrafos universitários, os problemas geopolíticos - que até o final do século XIX eram uma das razões de ser fundamentais da geografia - permanecem um verdadeiro tabu. Nada de abordar os problemas da guerra e os da rivalidade entre os Estados: não é científico, dizem eles, não é geografia!

Concepções mais ou menos amplas da geograficidade, um outro Vidal de La Blache
Para compreender o que foi, de fato, a evolução do pensamento geográfico na França desde o início do século XIX, para estar em condições de discernir suas características epistemológicas atuais, a concepção de geograficidade, à qual os geógrafos se referem mais ou menos implicitamente, é preciso atingir o porquê, no quadro de sua corporação, de certos fenômenos espaciais serem considerados dignos de interesse, enquanto outros, que se desenrolam da mesma forma no espaço, sobre o terreno e dos quais todo mundo fala, não são considerados dignos de uma análise científica; é, essencialmente, o caso dos fenômenos políticos e militares. Elisée Reclus lhes dedicava uma enorme atenção, o que, na época, nada tinha de extraordinário: no século XIX a idéia que se fazia da geografia implicava levar em consideração esses problemas, numa proporção bem racional do espaço político, dos homens e dos recursos que ali se encontravam; Humboldt, considerado, com justiça, o primeiro grande geógrafo moderno por causa de sua grande obra O cosmos, publicou também (em francês) cinco volumes do Ensaio político sobre o reino da Nova Granada (1811) e do Ensaio político sobre a ilha de Cuba (1811). No início do século XX, Ratzel impunha a Antropogeografia e a Geografia política: nessa Alemanha onde apareceu, pela primeira vez no mundo, a geografia universitária, esta foi então percebida como uma disciplina estreitamente ligada às questões políticas e militares.
Na França, a geografia universitária (com raríssimas exceções apenas, que a corporação esqueceu cuidadosamente) vai rejeitar, desde seus primeiros passos, esses problemas, para se afirmar como ciência, como se evocá-los fosse correr o risco, de desacreditá-la como ciência.
Como explicar a abertura da geograficidade que se manifesta no raciocínio de A
França de Leste, a diversidade dos fenômenos econômicos, sociais e políticos que Vidal considera nesta obra? É que não se trata de uma descrição geográfica do tipo universitário, conforme a idéia que se fazia então da geografia na universidade, mas de um raciocínio político, de uma demonstração geopolítica. Não se trata de descrever e de explicar os fenômenos julgados dignos de serem tratados, levando-se em consideração tradições da corporação, de suas relações com outras disciplinas ou dos cânones de cientificismo, mas de demonstrar que a Alsácia e a Lorena, anexadas pelo Império alemão em 1871, devem ser anexadas à França. Aliás, desde a primeira frase, Vidal previne que "não há uma só linha desse livro que não se ressinta das circunstâncias nas quais ele foi redigido". Essas circunstâncias, que Vidal não precisa, quais seriam elas? Em 1916, em plena guerra, não era necessário dizer aos franceses as razões pelas quais essas províncias deviam retornar à França. Mas os dirigentes dos Estados Aliados, os americanos em particular, não ficaram assim tão convencidos, pois a maior parte das populações da Alsácia e da parte da Lorena anexada em 1871 é de fala germânica: segundo o "princípio das nacionalidades", elas deveriam, portanto, ficar para a Alemanha. O presidente Wilson, que foi professor de história e de ciência política, estima até que, em caso de vitória dos Aliados, seria preciso, ali como alhures, proceder a um referendo, solução que o governo francês recusa. A tese francesa deve portanto ser sustentada por uma séria argumentação. Seria interessante saber se Vidal se pôs espontaneamente a trabalhar ou o fez a pedido do governo. Não importa: Vidal não redige um relato circunstancial, mas um grande livro, aquele que eu acredito ser sua verdadeira grande obra.

            Historiadores que querem uma geografia modesta
            Os geógrafos universitários e o espectro da geopolítica
            A partir do fim do século XIX, desde que existe na França uma corporação dos geógrafos universitários, esta se caracteriza por sua preocupação em afastar os raciocínios geopolíticos que haviam sido, em larga medida, durante séculos, a razão de ser de uma geografia que não era ainda ensinada a estudantes, futuros professores, mas a homens de guerra e a grandes funcionários do Estado. De outro lado, foram essas preocupações políticas e militares que justificaram, ou tornaram possível, a confecção das cartas - enorme tarefa - sem as quais os geógrafos universitários não poderiam dizer grande coisa. Mas dessa geografia estreitamente ligada à ação e ao poder, os geógrafos universitários se abstiveram, quase todos, de falar e fizeram como se ela estivesse morta e enterrada, levando-se em consideração que era preciso exorcizar suas eventuais reaparições. Poder-se-ia dizer que a geopolítica é o espectro que ronda a geografia humana há cerca de um século, e o horror e o desgosto que ela provoca se manifestam ainda hoje1. Mas geralmente não se pronuncia o nome, como vale mais a pena fazer com aqueles que voltam do além!
            Como explicar essa rejeição da geopolítica pelos geógrafos universitários franceses? Num primeiro momento, talvez pelo fato de serem os geógrafos, próximos do governo e do estado-maior, de um meio social bem diferente; é talvez um dos aspectos da rivalidade dos universitários e dos militares, que caracteriza a vida política e cultural francesa, bem diferente do que acontecia na Alemanha, por exemplo.
            Desde os anos cinqüenta, as concepções da geograficidade se ampliaram, claro, e se os geógrafos universitários levam em consideração problemas urbanos e industriais e evocam as estruturas econômicas e sociais, eles querem ainda ignorar os problemas políticos, mais ainda as questões militares, e a palavra geopolítica é também para eles um verdadeiro espectro que evoca as empresas hitlerianas.
Rejeitando, sobretudo por instigação dos historiadores, as preocupações políticas que haviam sido claramente evidentes e, durante séculos, uma das razões de ser da geografia antes que ela fosse ensinada nas universidades (sobretudo para formar professores de liceu), os primeiros geógrafos universitários acreditaram assegurar a cientificidade de uma disciplina nova e seus sucessores estão, ainda hoje, persuadidos de que fazer alusão a um problema geopolítico os desqualificaria enquanto cientistas. Quanto mais a "velha" geografia estava, próxima dos militares e dos chefes de Estado, mais a geografia universitária devia se afirmar desinteressada para ser considerada ciência.
Em 1965, Pierre George, que contribuiu enormemente para a difusão da geograficidade, publica A geografia ativa para mostrar no que pode contribuir a geografia para a "administração dos bens e dos homens nessa segunda metade do século XX".

Marx e o espaço negligenciado
A institucionalização da geografia dos professores na qualidade de discurso pedagógico "inútil", sistematicamente despolitizado, não favoreceu o desenvolvimento da vigilância com respeito aos geógrafos. E, no entanto, ela seria ainda mais necessária. Como é que historiadores e todos aqueles que se confrontaram com o problema do Estado não perceberam que a geografia, também, apreende o Estado e por uma de suas principais características essenciais, sua estrutura espacial, sua extensão, suas fronteiras? De fato, parece que esse silêncio cúmplice que continua a envolver a geografia, o qual se utiliza de numerosos clichês e argumentos, coloca um problema ainda bem mais profundo.
A geografia é uma representação do mundo. Mas não se fala disso nos meios que são, no entanto, ciosos de eliminar todas as mistificações e de denunciar todas as alienações. Os filósofos, que tanto escreveram para julgar a validade das ciências, e que exploram hoje a arqueologia do saber, conservam ainda, em relação à geografia, um silêncio total, embora essa disciplina devesse, mais que qualquer outra, atrair suas críticas. Indiferença? Falta de debate para arbitrar entre os geógrafos? Não seria antes uma inconsciente conivência?
É, evidentemente, inútil destacar a importância das transformações que o marxismo provocou na história, na economia política e em outras ciências sociais. Ele trouxe não somente uma problemática e um instrumental conceitual, como também determinou, em larga medida, o desenvolvimento dessa polêmica epistemológica e dessa vigilância quanto ao trabalho dos historiadores e economistas; essa polêmica e essa vigilância se manifestaram de início, fora da Universidade, rios meios mais politizados e também, em seguida, no interior do mundo universitário. Ora, até os anos sessenta, os marxistas não haviam ainda se preocupado com a geografia, embora se trate de um saber cujo significado econômico, social e político é considerável. Evidentemente, se considera, como na URSS, que a geografia provém, no essencial, das ciências naturais, a fraqueza, senão a ausência dessas relações com o marxismo, não colocaria problemas, a tal ponto. Mas quer ela seja discurso mistificador, cuja função é considerável, ou saber estratégico, cujo papel não é menos considerável, a geografia tem por objeto as práticas sociais (políticas, militares, econômicas, ideológicas...) em relação ao espaço terrestre.
O pouco interesse que Marx demonstra em relação aos problemas geográficos tem, ainda hoje, graves conseqüências. Para os marxistas, o essencial da argumentação política, quer se trate de problemas regionais, nacionais ou internacionais, se define em relação ao tempo, se expressa em termos históricos, mas ela só raramente faz referência ao espaço e, ainda assim, de uma forma muito alusiva e negligente. É contudo o espaço que é o domínio estratégico por excelência, o lugar, o terreno onde se defrontam as forças em presença, e onde se travam as lutas atuais.

Sintomas das dificuldades do marxismo em geografia
Ora, hoje ainda somos obrigados a constatar que, se há marxistas entre os geógrafos, não existe ainda verdadeiramente uma geografia marxista. Talvez ela esteja a ponto de aparecer? Mas entre as ciências sociais, a geografia é o setor em que a análise marxista tem a maior dificuldade de se desenvolver. Evidentemente, isso é diferente para especialistas de outras disciplinas que encontram, nas obras dos grandes teóricos do marxismo, matéria para numerosas citações, para amplos comentários, para múltiplas reflexões polêmicas e exegeses, enquanto os geógrafos marxistas não têm muitas citações ilustres nas quais eles possam se inspirar.
Uma outra dificuldade mais difundida da análise marxista em geografia se manifesta em numerosos trabalhos que decorrem, principalmente, da geografia humana: eles se caracterizam pelo enorme lugar ocupado por uma reflexão histórica, orientada para a análise das relações de produção e lutas de classes. Esse discurso de tipo marxista e que não é, necessariamente, original, é superposto com freqüência, pura e simplesmente, a um discurso de geografia completamente clássico: a análise marxista dos problemas espaciais é camuflada por um discurso que decorre, de fato, da história ou da economia política. Esse desvio, num certo sentido, em direção à reprodução de discursos que são melhor construídos, e cujo significado político é mais claro, coloca, se refletirmos bem, o problema da responsabilidade do geógrafo; sobretudo aqueles que, referindo-se ao marxismo, deveriam considerar o seu dever em participar das lutas sociais da forma mais eficaz. É de se notar que esse lugar importante que ocupa o discurso histórico no bojo do discurso geográfico não é, evidentemente, específico dos geógrafos de influência marxista. Na medida em que os geógrafos perceberam que a situação que eles descrevem é o resultado de toda uma série de evoluções que se combinam (a das formas de relevo, do povoamento, a de diversas atividades econômicas ... ), o procedimento histórico toma, inevitavelmente, um grande lugar na explicação geográfica.
Contudo, esse desvio dos geógrafos de influência marxista em direção à reprodução de um discurso história-ciências sociais, tem um duplo inconveniente: de um lado esse discurso histórico não coloca claramente em causa o discurso da geografia vidaliana; ele vem, antes, completá-lo, coroá-lo e, por essa via, ele lhe permite continuar a funcionar como meio de bloqueamento e de mistificação; de outro lado, esse discurso histórico permite continuar a camuflar os problemas teóricos que é  necessário colocar em geografia. Isso contribui para entreter, em amplos meios, a idéia de uma geografia, discurso pedagógico "inútil" mas inofensivo.

Princípios de uma geografia marxista ou o fim da geografia¿
É preciso também levar em consideração as condições climáticas, pedológicas, topográficas, que não derivam, fundamentalmente, da análise dos marxistas e que estes tendem a negligenciar, em prol do estudo das relações de produção. Essas últimas são, evidentemente, fundamentais mas, contrariamente à tendência dos marxistas que reduzem ao Econômico as características e as contradições das diversas sociedades, não se podem reduzir os problemas políticos, e mormente os problemas de poder, às modalidades de apropriação dos meios de produção.
Os geógrafos marxistas contribuíram, sobretudo, na análise dos problemas urbanos; os fenômenos de segregação social, de apropriação dos terrenos, de contradição entre o interesse coletivo e os apetites privados inserem-se, com efeito, de modo particularmente claro e simples, na problemática marxista. Ela fez suas provas nesse domínio.
Contudo, por mais importante que ela possa ser, a análise marxista dos fenômenos urbanos não pode se apossar, com exclusividade, da geografia marxista. Primeiro, essas pesquisas podem, com justiça, ser reivindicadas pelos urbanistas e sociólogos. Não se trata, bem entendido, de fazer corporativismo universitário, mas esse não é o meio de fazer avançar pela crítica os problemas dos geógrafos, o de imputar, a seu crédito, pesquisas que, na realidade, procedem de outras disciplinas, nas quais o estatuto epistemológico é bem mais avançado que o da geografia.
De outro lado, os geógrafos de influência marxista não são os únicos a estudar os problemas urbanos. Outros geógrafos, como outros sociólogos, outros economistas, que não se incluem absolutamente no marxismo e que não procuram sequer parecer "de esquerda", empreendem também essa análise das diversas formas da crise urbana, sem se referirem sistematicamente às contradições do sistema capitalista, sem apelar para sua destruição, falam, também eles, de "dominação", de segregação social, etc. Desses geógrafos, os marxistas dirão que são "inconseqüentes"... O que quer que seja, é claro que a análise dos problemas urbanos procede, numa larga escala, de um instrumental conceitual marxista ou marxiano.
De início, apesar do papel crescente das cidades na vida econômica e social e na organização do espaço, a geografia deve levar em consideração muitos outros espaços além dos da cidade ou aqueles que validamente se podem considerar como estruturados por uma rede de cidades. É preciso analisar a diversidade dos espaços rurais, onde as condições naturais e os fatores culturais são muito importantes. Nesse vasto domínio, os métodos de análise urbana não são operacionais. O estudo geográfico dos fenômenos urbanos, mesmo levado a diferentes níveis de análise, não parece, contudo, poder constituir mais do que uma parte somente da geografia, sobretudo se a considerarmos como saber estratégico ou análise científica, derive ela ou não do marxismo. Não é somente transferindo, extrapolando a problemática que contempla com eficácia as estruturas econômicas e sociais, que se avançará nos métodos de análise do espaço, que colocam ainda graves problemas, difíceis de circunscrever convenientemente.
Os sociólogos fazem malabarismos com a "produção" dos múltiplos espaços sociais e mentais, os economistas fazem economia espacial, os historiadores fazem a geo-história, enquanto os ecologistas se apoderam das relações homem-natureza.
Para muitos geógrafos universitários, o apossar-se dos problemas espaciais por parte de disciplinas mais brilhantes, mais influentes, mais na moda, é a causa principal e a manifestação capital da crise da geografia. Contudo, essas disciplinas "rivais" que "tocam" no domínio dos geógrafos, tratam dos problemas que eles não haviam ainda abordado, até agora.
Contudo, a geografia não parece prestes a desaparecer na qualidade de disciplina universitária e científica: ela se desenvolve com vigor, desde há pouco, em países nos quais ela não tinha tido importância até agora, como disciplina de ensino. Quanto mais o discurso dos geógrafos universitários tenha sido, durante muito tempo, amputado de qualquer prática, mais esse novo desabrochar da geografia está estreitamente ligado às pesquisas "aplicadas" e a considerações mais ou menos explicitamente estratégicas.

Do desenvolvimento da Geografia aplicada à “new geography”
Mas desde alguns decênios, a pesquisa em geografia se desenvolve rapidamente nos Estados Unidos, com recursos bastante consideráveis, seja nos organismos universitários, seja no quadro de outras estruturas. De fato, essa geografia, que não está ligada ao funcionamento de uma máquina para fabricar professores, parece cada vez mais útil àqueles que estão à testa das grandes firmas e do aparelho de Estado. Pois são eles que não somente propõem os contratos de pesquisa, mas também providenciam os meios materiais e as facilidades de acesso a informações confidenciais. Diferentemente da geografia universitária, onde as pesquisas, assim como o ensino, foram concebidas como um saber pelo saber, radicalmente amputado de toda prática, as pesquisas de geografia "aplicada” são conduzidas em função de objetivos explícitos, seja para propor uma solução técnica, mais ou menos parcial, seja para fornecer informações que permitirão visualizar uma ação.
Nos Estados Unidos, as pesquisas de geografia "aplicada" se desenvolveram primeiro no prolongamento dos estudos de mercado, realizados pelos economistas, que foram levados, por razões de eficácia, a apreender a dimensão espacial, fator evidentemente essencial aos Estados Unidos. Muito cedo se impôs a idéia de que era preciso analisar as zonas de influência das grandes cidades e a irradiação dos serviços implantados em cada uma delas. De outro lado, operações de desenvolvimento regional, como a do célebre Tennessee Valley Authority, começada antes da Segunda Guerra Mundial, demonstraram o interesse de uma análise geográfica. Enfim, a extensão  planetária dos interesses americanos, o fato de ter de visualizar intervenções rápidas nos locais mais diversos, fizeram com que a pesquisa geográfica fosse considerada uma ferramenta indispensável. As fotografias aéreas, e sobretudo  aquelas tomadas por satélites, fornecem centenas de milhares de documentos que é preciso analisar, "tratar”: a operação "Skylab", que durou semanas, acumulou uma documentação extraordinariamente mais variada e sobre um grande número de fenômenos "naturais" e "humanos" para toda a superfície do globo, do que se conseguiria empregando milhares de geógrafos durante anos!
O interesse crescente que os mestres da geografia universitária dedicam aos problemas de geografia aplicada levou-os a perceber as insuficiências de ....seus estudantes.
É nos Estados Unidos principalmente e em outros países onde a geografia escolar e universitária não se desenvolveu muito, que as necessidades da pesquisa em geografia aplicada conduziram, em boa proporção, a um conjunto de reflexões e de trabalhos teóricos que, cedo, foi batizado "New Geography". Este foi apresentado por seus participantes como o resultado de uma ruptura epistemológica em face do discurso literário e subjetivo da geografia "tradicional", e como passagem da geografia à categoria das ciências exatas. De fato, essa "New Geography", que é chamada também "geografia quantitativa" é baseada numa formulação muito avançada em termos de modelo matemático. Quanto mais o discurso da geografia universitária podia privilegiar o exame de alguns fatores julgados cientificamente interessantes e podia evocar suas combinações em termos qualitativos, tanto mais os métodos da geografia aplicada obrigam a levar em consideração um bem grande número de fatores: é preciso não somente dispor, para cada um deles, de um grande número de dados estatísticos, repartidos convenientemente no espaço e no tempo, mas também estabelecer um sistema de ponderação de seus papéis respectivos, para chegar à representação estatística do resultado de suas interações nos diferentes compartimentos que se traçam sobre a carta do espaço visado. Os métodos de análise fatorial não podem ser elaborados para tratar de um grande número de dados senão com o auxílio de poderosos computadores.

Geógrafos mais ou menos proletarizados para pesquisas parcelares confiscadas por aqueles que as pagam
Para os geógrafos, encerrados até agora em sua função ideológica professoral, a pesquisa aplicada é a possibilidade de se sentir útil para qualquer coisa, sentimento muito profundo entre muitos deles. Têm eles o sentimento de se religarem com a tradição dos geógrafos e de restabelecer, ao mesmo tempo, relações com o poder e ligações entre saber e ação? É certo que a geografia seja uma representação do mundo que os incita a brincar um pouco de demiurgo?
Bem entendido, esses pesquisadores dispõem de meios materiais e facilidades de informação que não teriam para uma pesquisa universitária, mas, pelos termos do contrato que cada qual assinou, eles não estão mais livres para conduzir a sua pesquisa a seu bel-prazer, nem, sobretudo, para divulgar os resultados. Esses pertencem, por contrato, à administração, ao escritório de estudo, à empresa, à organização internacional, que se reservam o direito de os manter secretos, ou de difundi-los de forma mais ou menos confidencial. Muito fraca é a proporção de trabalhos de geografia aplicada que são objeto de publicação.
Assim, a maior parte dos geógrafos que participam de pesquisas desse gênero ignoram-se uns aos outros e, sobretudo, o que é ainda mais grave, eles não podem comunicar os resultados de suas pesquisas, nem comparar seu método. Certos pesquisadores não sabem mesmo, muito bem, que utilização será efetivamente feita de seu trabalho. A experiência que pode tirar cada geógrafo engajado nesse gênero de pesquisa se acha, portanto, limitada e perde seu efeito de treinamento.
A pesquisa "aplicada” se torna um mercado, onde uns e outros tentam se colocar e se fazer bem, vistos pelos financistas. Não se fala nunca entre colegas sobre os contratos que se obtiveram, pois não se quer fazer alarde sobre a remuneração que se ganhou, nem indicar a outros os meios e manobras seguidas. Toma-se cuidado, sobretudo, de não dar a conhecer os resultados de uma pesquisa, a menos que tenha sido devidamente autorizado pelo organismo que é proprietário, pois se teme, senão um processo, na melhor das hipóteses que essa indiscrição comprometa, para sempre, a oportunidade de obter outros contratos ...
Diversamente à pesquisa universitária, onde os resultados são normalmente publicados no nome daquele que os obteve - e essa personalização das idéias produzidas vale muito, como para todos os intelectuais -, a pesquisa em geografia aplicada coloca o pesquisador num status bem diverso, o de todos os assalariados que perdem qualquer direito sobre os frutos de seu trabalho, desde que tenham sido remunerados. Trata-se, no fundo, de uma espécie de proletarização.
Pouco a pouco, as atividades de pesquisa, no seu conjunto, tendem a não poderem mais ser realizadas senão em condições que proíbem a difusão dos seus resultados: é unicamente fazendo a pesquisa por conta de determinada organização que se pode não somente dispor de certos meios materiais, como, sobretudo, da possibilidade de ter acesso à informação.
A posição universitária de intelectual independente, que liga seu nome aos resultados de uma pesquisa que ele escolheu. que ele realizou na qualidade de obra científica pessoal (e, às vezes, de obras-primas), que ele pode fazer ser conhecida mais ou menos amplamente, tende a ceder lugar a uma condição de empregado, de técnico engajado sob contrato, freqüentemente a título temporário, para efetuar anonimamente uma pesquisa mais ou menos parcelada, por conta de um organismo público ou privado, que fixa o objeto e o quadro espacial e que detém os resultados, a título de propriedade exclusiva.
É imprescindível que os geógrafos tenham relações com o poder e tais relações são necessárias para que a geografia não seja tão-só um discurso ideológico e que ela apareça como saber estratégico. Mas essas relações podem não ser necessariamente servis; elas podem ser contraditórias e, para certas pessoas, antagônicas.

Para uma geografia das crises
Sem dúvida pode-se dizer que, desde que se fizeram traçados de estradas, ferrovias, ou que se criaram cidades, fez-se geografia "aplicada”, e são sobretudo militares, engenheiros, homens de negócios que trabalharam um conjunto de informações, de cartas e de raciocínios para dominar o espaço e ali agir. Essa fase, que corresponde à descoberta e à organização de espaços até então mal conhecidos e mal controlados por aqueles que detinham o poder está quase terminada na maioria dos países. Ela durou até o fim do século XIX nos "países novos", até a metade do século XX na URSS, mas ela bate em cheio atualmente nos países do Terceiro Mundo.
Hoje, na maioria dos países, as pesquisas de "geografia aplicada" se desenvolvem principalmente em espaços onde se manifestam, recentemente, dificuldades de ordem variada. Essa "manifestação das dificuldades" é uma expressão ambígua que envolve relações complexas de causalidade: seja que o governo se ache levado a "considerar” fenômenos já antigos, em razão de seu agravamento brutal, em decorrência de uma tomada de consciência quase geral; seja que os dirigentes se advirtam de que uma certa região "conhece" tal problema "específico", que é, na realidade, bem mais geral. Sempre acontece que as pesquisas de geografia aplicada são direta, ou indiretamente, função de "problemas", de "dificuldades", de "mal-estares", de "desequilíbrios", que se trata para o governo de resolver, de transpor. É de se notar que essas pesquisas não são, diretamente, uma tarefa dos burocratas, dos políticos ou dos práticos, mas são da alçada dos "especialistas", geógrafos (transformados, às vezes, em planejadores espaciais) que têm um estatuto de “cientistas". Esses são, numa grande proporção, externos aos organismos políticos e administrativos, para quem esses estudos são realizados, e que terão, ao menos em princípio, de tomar decisões, em conseqüência.
Essa crise dialética se acelera, não somente no tempo, como também no espaço. Ela não se manifesta uniformemente na superfície do globo mas, bem ao contrário, ela aí toma formas cada vez mais diferenciadas, embora cada vez mais ligadas umas às outras. Esse processo de diferenciação está ainda muito mal analisado. Faz-se alusão a ele, constatando, de modo extremamente esquemático, os contrastes que existem entre os países ditos "desenvolvidos" e os países ditos “subdesenvolvidos". Mas essa diferenciação, que está ligada aos efeitos contraditórios de fenômenos relacionais cada vez mais rápidos e estreitamente ligados, se manifesta não somente em nível planetário, mas no bojo do Terceiro Mundo, como no bojo do grupo dos países mais industrializados e também no quadro de cada Estado, como no quadro das diversas "regiões", que é útil distinguir para cada um deles. Essa diferenciação não se marca somente por indicadores econômicos, os quais, após os economistas, adquirimos o costume de referir. Ela se manifesta também no plano de cada um dos diferentes grandes tipos de contradições que parece útil distinguir (por exemplo, as contradições demográficas, as contradições ecológicas, as contradições políticas ...). Sua propagação, suas interações, não se efetuam somente sobre formas de organizações econômicas e sociais já bastante diferenciadas, mas também num espaço onde a diversidade das condições naturais, ecológicas, é ainda mais complexa, em razão das transformações provocadas pelos métodos de exploração que ali foram praticados. Para perceber os diferentes aspectos dessa superposição, cujos elementos conhecem ritmos de evolução mais ou menos rápidos, é preciso distinguir vários níveis de análise espacial, pois as contradições não se manifestam da mesma forma, quando as abordamos a nível local (tal como as pessoas as suportam diretamente) e sobre muitos espaços mais amplos, onde elas devem ser apreendidas de maneira mais abstrata.
Em si mesma, a análise das formas de diferenciação espacial da crise constitui um saber estratégico extremamente útil, portanto extremamente perigoso. Os dirigentes das grandes firmas e dos grandes aparelhos de Estado, capitalistas, apesar de sua repugnância ideológica com relação ao marxismo, são também "realistas". Eles se lembram, por exemplo, de que puderam interromper as crises clássicas de superprodução, a partir do momento em que o Dr. Keynes se apoderou implicitamente da análise de Marx, para propor uma estratégia "anticíclica", e eles perceberam que a reforma agrária, reclamada desde há muito pelas forças de esquerda em numerosos países, poderia não ser assim tão má. De fato, os dirigentes dos aparelhos de Estado e dos grandes grupos capitalistas têm cada vez mais necessidade de uma análise marxista, nem que seja para, no mínimo, compreender o "terreno" e as intenções do adversário. Mas lhes é bem difícil, por razões evidentes de estratégia ideológica, incitar aqueles que trabalham para eles a assimilar o marxismo para poderem analisar eficazmente as situações, e suas evoluções contraditórias. É porque, para aquilo que foi convencionado chamar os estados-maiores, é necessário, senão apelar para pesquisadores marxistas, ao menos deixá-los produzir para utilizar seus trabalhos.

Esses homens e essas mulheres que são objetos de estudo
De fato, o problema não está somente entre o pesquisador e o poder, mas entre o pesquisador, o poder e aqueles que vivem no espaço ao qual se refere a pesquisa, isto é, os homens e as mulheres que são, como se diz, "objetos" de estudo. A geografia deve estar bem consciente de que, analisando espaços, ela fornece ao poder informações que permitem agir sobre os homens que vivem nesses espaços. A contradição pode ser esquematizada da seguinte maneira: quanto mais uma pesquisa estiver em condições de apreender as realidades (e, em particular, mais ela percebe as diversas contradições, referindo-se mais ou menos explicitamente a uma análise marxista), isto é, quanto mais o valor científico dessa análise for grande, mais o poder disporá de informações preciosas que lhe permitirão agir de forma eficiente sobre o grupo estudado: teoricamente, é para o bem desse último ou no interesse geral, mas de fato, na maioria das vezes, não é nada disso.
É preciso que o geógrafo perceba que ele é, de fato, não um espectador impotente, mas um agente, de informações, quer queira, quer não, a serviço do poder, e suas proclamações revolucionárias ou suas preocupações morais não mudarão nada aí. É preciso que ele perceba que sua pesquisa pode ter graves conseqüências, mesmo se ela apresenta um caráter parcial (pois seus resultados podem ser combinados aos de outras pesquisas), mesmo se ela só aborda as características físicas de um espaço (foi de acordo com as conclusões de geomorfólogos quanto à erosão que, em numerosos países, centenas de milhares de pessoas foram expulsas dos lugares onde viviam, para fazer reflorestamento, trabalhos de defesa e de restauração dos solos). O geógrafo deve se lembrar constantemente que a geografia é um saber estratégico, e que um saber estratégico é perigoso.
Como os textos geográficos (e também os que procedem das ciências sociais) seriam diferentes se o pesquisador devesse, antes de começar a redação final, ler o que produziu e explicá-lo diante das pessoas que vivem no espaço que ele estudou e que são, de um modo ou de outro, concernentes à sua pesquisa! Mas, na maioria das vezes, as pessoas que acolheram o geógrafo, que responderam às suas múltiplas questões, que o guiaram no terreno, que o ajudaram de várias formas, não saberão jamais o que dali retirou; em contrapartida, ele comunicará diretamente (ou não) todos os dados que obteve àqueles que os utilizarão para melhor elaborar as forças de que dispõe sobre o território que ele estudou; sobre os homens e as mulheres que ali vivem e dos quais a pesquisa revelou, expôs as características, em particular aquelas que revelam as maneiras pelas quais eles se organizam espacialmente. Não é somente metáfora dizer que, por esse fato, esse grupo que foi objeto de pesquisa está ainda mais exposto às formas de agir das forças econômicas e políticas que estão poderosamente organizadas sobre espaços bem mais consideráveis. Se bem que estejam às vezes longe, aqueles que dirigem essas forças dispõem sobre esse grupo, para agir sobre ele, de informações, mais eficientes do que o grupo tem de si próprio. Pois esse conhecimento implícito maquinal as diversas maneiras pelas quais o grupo utiliza seu território - é ainda estreitamente confundido com práticas usuais comuns a todos os membros do grupo e circunscrito a um espaço mais ou menos limitado. A despeito de sua riqueza, enquanto ela não tenha sido transformada, esse saber espontâneo não pode lhes servir para compreender e enfrentar situações novas que resultam de empreendimentos dirigidos do exterior sobre espaços bem mais vastos, em função de objetivos ou de estratégias que são escondidos da maioria. Mas em boa parte é desse conhecimento, até então não formulado, não dissociado da vida cotidiana, que o geógrafo vai extrair, por sua enquête, em função de uma certa problemática, dados que, uma vez formulados, formalizados, cartografados se tornarão instrumentos eficazes para ações que serão empreendidas sobre esse grupo segundo estratégias e objetivos que ele ignora. Estando o geógrafo, consciente ou não, são essas estratégias e esses objetivos que orientam, em grande parte, a problemática que ele elabora e que o incita a se interessar por isto e não por aquilo.

É preciso que as pessoas saibam o porquê das pesquisas das quais são o objeto
Para que os homens e as mulheres que vivem num espaço que vai ser objeto, tal como eles Próprios, de uma pesquisa geográfica, possam ter, também, conhecimento dos resultados que ela fornecerá, de nada serve proporcionar cursos, inoportunamente, para lhes ensinar o que eles são; é preciso que eles sejam postos ao corrente das razões pelas quais essa pesquisa foi encetada, do que vai, talvez, se passar no lugar onde moram, com a atenção voltada para o que se passa alhures, levando em consideração os projetos do poder. Uma das primeiras regras dessa deontologia do geógrafo sobre o terreno, que seria preciso impor para que ele cesse de ser um espião e evitar que seja um canalha, mais ou menos inconsciente, seria que ele explicasse por que está ali, por que se interessa por isso e por aquilo, por determinada forma de terreno, ou determinada maneira de irrigar a terra, etc., e as pessoas estarão, logo, extremamente interessadas pelo porquê dessas investigações, pois elas percebem, rapidamente, que isso lhes diz respeito, no mais alto grau. É preciso pouco tempo para que a análise geográfica lhes apareça, de fato, no seu papel estratégico. Evidentemente essa maneira de agir coloca problemas, pois o geógrafo vai aparecer como agente do poder. Mas o problema do poder não se coloca mais para ele no plano do caso de consciência após o término de sua pesquisa (quem irá utilizar seus resultados?). O problema está colocado desde o princípio e, em termos finalmente políticos, no bojo do grupo "objeto da pesquisa" que vai discuti-lo e se inteirar dos projetos do poder e das contradições que eles acarretam. O geógrafo, pelo fato de ter começado a expor suas finalidades, deverá se explicar e definir suas posições em face às contradições que arrisca provocar a
execução dos projetos do poder.
Sem dúvida, ele está certo de que, uma vez revelados os fins de certas pesquisas ao grupo que deve ser o objeto delas, estas não poderão se efetivar e o geógrafo deverá partir. Em certos casos, resultantes de mal-entendidos, será evidentemente uma pena. Mas, na maioria das vezes, isso será tanto melhor e certos golpes maldosos não poderão mais acontecer assim tão facilmente. Se refletirmos bem sobre isso, é perfeitamente justo que um grupo recuse ser estudado e que se oponha a que se analise a maneira pela qual utiliza o espaço onde vive.
Em contrapartida, os resultados de uma pesquisa da qual um grupo decidiu participar, com conhecimento de causa, são de uma extrema riqueza, tanto do ponto de vista propriamente científico, como no plano cultural e político. Um certo número de exemplos, tanto nas sociedades altamente industrializadas, como nas do Terceiro Mundo, prova que tudo isso não é utopia. Por causa mesmo do caráter eminentemente estratégico do raciocínio geográfico, desde que ele esteja ligado a uma prática, grupos relativamente pouco numerosos (de algumas centenas a alguns milhares de pessoas), conscientes de ocupar um espaço delimitado sobre o qual eles têm direitos, podem participar verdadeiramente de uma pesquisa sobre as formas de organização espacial de suas atividades e sobre as mudanças positivas e negativas que são suscetíveis de ali serem operadas, desde que eles hajam compreendido que o saber que dali retiram vai lhes permitir se organizar e se defender melhor. Esse saber resulta, em larga escala, da transformação da explicação, sob o efeito das questões do geógrafo, deste conhecimento coletivo da situação local, que até então não havia sido formulada. Mas o saber integra também as informações fornecidas pelo geógrafo sobre o que se passa alhures e sobre os fenômenos que não podem mais ser apreendidos senão levando em consideração espaços bem mais extensos.

A crise da geografia dos professores
É justamente o interesse crescente - e não o desinteresse, para o que se passa no conjunto do mundo, que determina - em grande parte, as dificuldades dos professores de geografia. Sem dúvida, no caso da geografia, a relação pedagógica veio a ser transtornada, pois o mestre não tem mais, como outrora e como ainda acontece com outras disciplinas, o monopólio da informação. Antigamente o curso de geografia, mesmo com um discurso-catálogo que pareceria agora uma caricatura inventada por estudantes esquerdistas, suscitava interesse, porque ele era o único a trazer a informação; hoje, mestre e alunos recebem ao mesmo tempo, simultaneamente com as atualidades, uma massa de informações geográficas, caóticas. Geografia em pedaços, o ocasional, o espetacular, sem dúvida, mas geografia de qualquer forma. Por que em classe os alunos não querem mais ouvir falar de geografia? Por causa da repetição, do "já dito"? Seguramente, não.

Os primórdios de uma grande polêmica epistemológica

Se uma geografia (a dos professores), após ter sido, durante muito tempo, negligenciada, é hoje rejeitada pelos alunos (suas motivações sendo, evidentemente, muito confusas) e se ela começa a ser posta em causa por especialistas de outras disciplinas (sem que eles ali vejam, ainda, muito claro), é que somente ela não parece mais capaz de dar uma descrição do mundo que satisfaça as nossas preocupações atuais, mas também porque se acaba de perceber, ainda muito confusamente, que ela é uma espécie de tela que impede de apreender, convenientemente, problemas graves em suas configurações espaciais e pressente-se agora que esta é uma característica primordial, por ser a mais estratégica.