YVES LACOSTE
Uma
disciplina simplória e enfadonha
A geografia é, de início, um saber
estratégico estreitamente ligado a um conjunto de práticas políticas e
militares e são tais práticas que exigem o conjunto articulado de informações
extremamente variadas, heteróclitas à primeira vista, das quais não se pode
compreender a razão de ser e a importância, se não se enquadra no bem
fundamentado das abordagens do Saber pelo Saber. São tais práticas estratégicas
que fazem com que a geografia se torne necessária, ao Chefe Supremo, àqueles
que são os donos dos aparelhos do Estado. Trata-se de fato de uma ciência?
Pouco importa, em última análise: a questão não é essencial, desde que se tome
consciência de que a articulação dos conhecimentos relativos ao espaço, que é a
geografia, é um saber estratégico, um poder.
A
geografia, enquanto descrição metodológica dos espaços, tanto sob os aspectos
que se convencionou chamar "físicos", como sob suas características
econômicas, sociais, demográficas, políticas (para nos referirmos a um certo
corte do saber), deve absolutamente ser recolocada, como prática e como poder,
no quadro das funções que exerce o aparelho de Estado, para o controle e a
organização dos homens que povoam seu território e para a guerra.
Muito
mais que uma série de estatísticas ou que um conjunto de escritos, a carta é a
forma de representação geográfica por excelência; é sobre a carta que devem ser
colocadas todas as informações necessárias para a elaboração de táticas e de
estratégias. Tal formalização do espaço, que é a carta, não é nem gratuita, nem
desinteressada: meio de dominação indispensável, de domínio do espaço, a carta
foi, de início criada por oficiais e para os oficiais. A produção de uma carta,
isto é, a conversão de um concreto mal conhecido em uma representação abstrata,
eficaz, confiável, é uma operação difícil, longa e onerosa, que só pode ser
realizada pelo aparelho de Estado e para ele. A confecção de uma carta implica
num certo domínio político e matemático do espaço representado, e é um
instrumento de poder sobre esse espaço e sobre as pessoas que ali vivem.
Mas
a geografia não serve somente para sustentar, na onda de seus conceitos,
qualquer tese política, indiscriminadamente. Na verdade, a função ideológica
essencial do discurso da geografia escolar e universitária foi sobretudo a de
mascarar por procedimentos que não são evidentes, a utilidade prática da
análise do espaço, sobretudo para a condução da guerra, como ainda para a
organização do Estado e prática do poder. E sobretudo quando ele parece
"inútil" que o discurso geográfico exerce a função mistificadora mais
eficaz, pois a crítica de seus objetivos "neutros" e
"inocentes" parece supérflua. A sutileza foi a de ter passado um
saber estratégico militar e político como se fosse um discurso pedagógico ou
científico perfeitamente inofensivo. Nós veremos que as conseqüências desta
mistificação são graves. E o porquê de ser particularmente importante afirmar
que a geografia serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, isto é,
desmascarar uma de suas funções estratégicas essenciais e desmontar os subterfúgios
que a fazem passar por simplória e inútil.
(...)
A rigor, os geógrafos universitários consentem em evocar, da boca para fora, o
papel de uma espécie de "geografia primitiva" (Alain Reynaud) na
época em que o saber estabelecido pela geografia do rei estava destinado não
aos jovens alunos ou a seus futuros professores, mas aos chefes de guerra e
àqueles que dirigem o Estado.
A
geografia existe desde que existem os aparelhos de Estado, desde Heródoto
(...).
Desde
essa época, a geografia dos oficiais, para se fazer discreta, não deixa contudo
de existir com um pessoal especializado, cujo número não é desprezível, com
seus meios que se tornaram consideráveis (os satélites), seus métodos, e ela
continua a ser como há séculos, um temível instrumento de poder. Esse conjunto
de representações cartográficas e de conhecimentos bem variados, visto em sua
relação com o espaço terrestre e nas diferentes formas de práticas do poder,
forma um saber claramente percebido como estratégico por uma minoria dirigente,
que a utiliza como instrumento de poder. À geografia dos oficiais decidindo com
o auxílio das cartas a sua tática e a sua estratégia, à geografia dos
dirigentes do aparelho de Estado, estruturando o seu espaço em províncias,
departamentos, distritos, à geografia dos exploradores (oficiais,
freqüentemente) que prepararam a conquista colonial e a "valorização"
se anexou a geografia dos estados-maiores das grandes firmas e dos grandes
bancos que decidem sobre a localização de seus investimentos em plano regional,
nacional e internacional, Essas diferentes análises geográficas, estreitamente
ligadas a práticas militares, políticas, financeiras, formam aquilo que se pode
chamar "a geografia dos estados-maiores", desde os das forças armadas
até os dos grandes aparelhos capitalistas.
Mas
essa geografia dos estados-maiores é quase completamente ignorada por todos
aqueles que não a executam, pois suas informações permanecem confidenciais ou
secretas.
Hoje,
mais do que nunca, a geografia serve, antes de tudo, para fazer a guerra. A
maioria dos geógrafos universitários imagina que, após a confecção de cartas
relativamente precisas para todos os países, para todas as regiões, os
militares não têm mais necessidade de recorrer a este saber que é a geografia,
aos conhecimentos disparatados que ela reúne (relevo, clima, vegetação, rios,
repartição da população, etc.). Nada é mais falso. Primeiro porque as
"coisas" se transformam rapidamente: se a topografia só evolui muito
lentamente, a implantação das instalações industriais, o traçado das vias de
circulação, as formas do habitat se modificam a um único ritmo bem mais rápido
e é preciso levar em consideração essas transformações para estabelecer as
táticas e as estratégias.
De
outro lado, a elaboração de novos métodos de guerra implica numa análise bem precisa das combinações
geográficas, das relações entre os homens e as "condições naturais"
que se trata justamente de destruir ou modificar para tornar tal região
imprópria à vida, ou para encetar um genocídio.
Em
nossos dias, a abundância de discursos que se referem ao
"amenagement" do território em termos de harmonia, de melhores
equilíbrio a serem encontrados. serve sobretudo para mascarar as medidas que
permitem às empresas capitalistas, sobretudo às mais poderosas aumentar seus
benefícios. É preciso perceber que o "amenagement " do território não
tem como único objetivo o de maximizar o lucro mas também o de organizar
estrategicamente o espaço econômico, social e político, de tal forma que o
aparelho de Estado possa estar em condições de abafar os movimentos populares.
Se isto é bem pouco nítido nos países há muito industrializados, os planos de
organização do espaço são manifestamente bastante influenciados pelas
preocupações policiais e militares nos Estados em que a industrialização é um
fenômeno recente e rápido.
Da Geografia dos
professores aos écrans da Geografia espetáculo
Desde
o fim do século XIX pode-se considerar que existem duas geografias:
-
Uma, de origem antiga, a geografia dos Estados-maiores, é um conjunto de representações
cartográficas e de conhecimento variados de representações cartográficas e de
conhecimento variados referentes ao espaço; esse saber sincrético é claramente
percebido como eminentemente estratégico pelas minorias dirigentes que o
utilizam como instrumento de poder.
-
A outra geografia, a dos professores, que apareceu há menos de um século, se
tornou um discurso ideológico no qual uma das funções inconscientes, é a de
mascarar a importância estratégica dos raciocínios centrados no espaço. Não somente
essa geografia dos professores é extirpada de práticas políticas e militares
como de decisões econômicas (pois os professores nisso não tem participação),
mas ela dissimula, aos olhos da maioria, a eficácia dos instrumentos de poder
que são as análises espaciais. Por causa disso a minoria no poder tem
consciência de sua importância, é a única a utilizá-las em função dos seus
próprios interesses e este monopólio do saber é bem mais eficaz porque a
maioria não dá nenhuma atenção a uma disciplina que lhe parece tão
perfeitamente “inútil”.
Desde
o fim do século XIX, primeiro na Alemanha e depois sobretudo na França, a
geografia dos professores se desdobrou como discurso pedagógico de tipo
enciclopédico, como discurso científico, enumeração de elementos de
conhecimento mais ou menos ligados entre si pelos diversos tipos de
raciocínios, que têm todos um ponto comum: mascarar sua utilidade prática na
conduta da guerra ou na organização do Estado.
A
ideologia do turismo faz da geografia uma das formas de consumo de massa:
multidões cada vez mais numerosas são tomadas por uma verdadeira vertigem
faminta de paisagens, fontes de emoções estéticas, mais ou menos codificadas. A
carta, representação formalizada do espaço que somente alguns sabem interpretar
e sabem utilizar como instrumento de poder, é largamente eclipsada no espírito
de todos pela fotografia da paisagem. Esta última, segundo os "pontos de
vista" e de acordo com as distâncias focais das lentes das objetivas,
escamoteia as superfícies, as distâncias da carta, para privilegiar silhuetas
topográficas verticais que se recortam, em diorama, sobre fundo de céu. É todo
um condicionamento cultural, toda uma impregnação que incita tanto que nós achamos
belas paisagens às quais não se prestava nenhuma atenção antes.
Um saber
estratégico na mão de alguns
Em
contrapartida, em numerosos Estados, a geografia é claramente percebida como um
saber estratégico e os mapas, assim como a documentação estatística, que dá uma
representação precisa do país, são reservados à minoria dirigente.
Esse
confisco dos conhecimentos geográficos é essencialmente devido a problemas de
política interna.
Após
várias experiências desastrosas, o aprendizado da leitura de cartas aparece
como tarefa prioritária para os militantes, num grande número de países. No
entanto, na maioria dos países de regime democrático, a difusão de cartas, em
qualquer escala, é completamente livre, assim como a dos planos da cidade. As
autoridades perceberam que poderiam colocá-las em circulação, sem
inconveniente. Cartas, para quem não aprendeu a lê-Ias e utilizá-las, sem
dúvida, não têm qualquer sentido, como não teria uma pagina escrita para quem
não aprendeu a ler. Não que o aprendizado da leitura de uma carta seja uma
tarefa difícil, mas é ainda preciso que se veja o interesse em práticas
políticas e militares: a livre circulação das cartas nos países de regime
liberal é o corolário do pequeno número daqueles que podem pretender investir
contra os poderes estabelecidos, em lugar de outros tipos de ação diversos
daqueles convencionados num sistema democrático.
(...)O
sistema das multinacionais é, sem dúvida, bem analisado, mas somente no plano
teórico: uma análise geográfica precisa dos múltiplos pontos controlados por
essas organizações tentaculares não é impossível de ser feita e isso permitiria
dirigir contra elas, ações imbricadas, denunciar bem mais eficazmente suas
condutas concretas (sempre aperfeiçoando a teoria)- o saber geográfico não deve
permanecer como apanágio dos dirigentes de grandes bancos; ele pode ser voltado
contra eles, na condição de prestar atenção às formas de localização dos
fenômenos e cessar de evocá-los abstratamente.
Numa
outra escala, a dos problemas que se colocam na cidade, é surpreendente
constatar a que ponto os habitantes (e mesmo os mais preparados politicamente)
se acham incapacitados de prever as conseqüências desastrosas que acarretarão
tal plano de urbanismo, tal empresa de renovação, que no entanto lhes concerne
diretamente. As municipalidades, os promotores estão agora tão conscientes
desta incapacidade que eles não hesitam mais em praticar o "acordo" e
de apresentar os planos dos futuros trabalhos, pois as objeções são raras e
fáceis de iludir. Deveras, as representações espaciais só têm verdadeiro
significado para aqueles que as sabem ler, e esses são raros; dessa forma, as
pessoas não irão perceber até que ponto foram enganadas, se não após o término
dos trabalhos, quando as modificações se tomarem irreversíveis, em boa parte.
Miopia e
sonambulismo no seio de uma espacialidade tornada diferencial
É
preciso, de início, fazer referências ao conjunto das práticas sociais e às
diversas representações de espaços que lhe são ligadas.
Outrora,
na época em que a maioria dos homens vivia ainda para o essencial, no quadro da
autossubsistência aldeã, a quase totalidade de suas práticas se inscrevia, para
cada um deles, no quadro de um único espaço, relativamente limitado: o
"terroir”* da aldeia e, na periferia, os territórios que relevam das
aldeias vizinhas. Além, começavam os espaços pouco conhecidos, desconhecidos,
míticos. Para se expressarem e falar de suas práticas diversas, os homens se
referiam, portanto, antigamente, à representação de um espaço único que eles
conheciam bem concretamente, por experiência pessoal.
Mas, desde há
muito, os chefes de guerra, os príncipes, sentiram necessidade de representar
outros espaços, consideravelmente mais vastos, os territórios que eles
dominavam ou que queriam dominar; os mercadores, também, precisam conhecer as
estradas, as distâncias, em regiões distantes onde eles
comercializavam
com outros homens.
Para
esses espaços muito vastos ou dificilmente acessíveis, a experiência pessoal, o
olhar e a lembrança não eram mais suficientes. É então que o papel do
geógrafo-cartógrafo se toma essencial: ele representa, em diferentes escalas,
territórios mais ou menos extensos; a partir das "grandes
descobertas", poder-se-á representar a terra inteira num só mapa em escala
bem e este será, durante muito tempo, o orgulho dos soberanos que o detêm.
Durante séculos, só os membros das classes dirigentes puderam apreender, pelo
pensamento, espaços bastante amplos pata tê-los sob suas vistas e essas
representações do espaço eram um instrumento essencial da prática do poder
sobre territórios e homens mais ou menos distantes. O imperador deve ter uma
representação global e precisa do império, de suas estruturas espaciais
internas (províncias) e dos Estados que o contornam - é uma carta em escala pequena
que é necessária. Em contrapartida, para tratar problemas que se colocam nesta
ou naquela província, precisam de uma carta em escala maior, a fim de poder dar
ordens a distância, com uma relativa precisão. Mas para a massa dos homens
dominados, a representação do império é mítica e a única visão clara e eficaz é
a do território aldeão.
As
pessoas, cada vez mais diferenciadas profissionalmente, são individualmente
integradas (sem que elas tomem claramente conhecimento disso) em múltiplas
teias de relações sociais que funcionam sobre distâncias mais ou menos amplas
(relações de patrão e empregados, vendedor e consumidores, administrador e
administrados...). Os organizadores e os responsáveis por cada uma dessas
redes, isto é, aqueles que detêm os poderes administrativos e financeiros, têm
uma idéia precisa de sua extensão e de sua configuração; quando um industrial
ou um comerciante não conhece bem a extensão de seu mercado, ele manda fazer,
para ser mais eficaz, um estudo onde será possível distinguir a influência que
ele exerce (e a que ele pode ter) a nível local, regional, nacional, levando em
consideração as posições de seus concorrentes.
Hoje,
só se conhecem bem dois lugares, dois bairros (aquele onde se dorme e aquele
onde se trabalha); entre os dois existe, para as pessoas, não exatamente todo
um espaço (ele permanece desconhecido, sobretudo se é atravessado dentro de um
túnel de metrô), mas, melhor dizendo, um tempo, o tempo de percurso, pontuado
pela enumeração dos nomes de estações.
(...)
De fato, as diversas práticas sociais têm, cada qual, uma configuração espacial
particular. Chega-se assim à uma superposição de conjuntos espaciais que se
interceptam uns os outros.
As
práticas sociais se tomaram mais ou menos confusamente multi-escalares. No passado
vivia-se totalmente num mesmo lugar, num espaço limitado, mas bem conhecido e
contínuo. Hoje, nossos diferentes "papéis" se inscrevem cada um em
migalhas de espaço, entre os quais nós olhamos sobretudo nossos relógios,
quando nos fazem passar, a cada dia, de um a outro papel. Se os sonâmbulos se
deslocam sem saber por que num lugar que eles conhecem, nós não sabemos onde
estamos nos diversos locais onde temos algo a fazer. Vivemos, a partir do
momento atual, numa espacialidade diferencial2 feita de uma multiplicidade de
representações espaciais, de dimensões muito diversas, que correspondem a toda
uma série de práticas e de ideias mais ou menos dissociadas.
O
desenvolvimento desse processo de especialidade diferencial se traduz por essa
proliferação das representações espaciais, pela multiplicação das preocupações
concernentes ao espaço (nem que seja por causa da multiplicação dos
deslocamentos). Mas esse espaço do qual todo mundo fala, ao qual nos referimos
todo tempo, é cada vez mais difícil de apreender globalmente para se perceber
suas relações com uma prática global.
É
sem dúvida uma das razões prioritárias pelas quais os problemas políticos são
tão raramente colocados em função de espaço por aqueles que não estão no poder.
De fato, os problemas políticos correspondem a toda uma gama de redes de
domínio que possuem configurações espaciais bem diversas e que se exercem sobre
espaços mais ou menos consideráveis (desde o nível da aldeia e do cantão, até a
dimensão planetária).
Para
se reconhecer bem facilmente nesse emaranhado, em boa parte constituído de
informações confidenciais, para estar em condições de utilizá-los com eficiência,
não é preciso ser um gênio; é preciso, sobretudo, fazer parte do grupo no poder
e ter a sustentação das classes dominantes.
A Geografia
escolar que ignora toda a prática teve, de início, a tarefa de mostrar a pátria
(...)
O desenvolvimento do processo de espacialidade diferencial acarretará,
necessariamente, cedo ou tarde a evolução a nível coletivo de um saber pensar o
espaço, isto é, a familiarização de cada um com um instrumento conceitual que
permite articular, em função de diversas práticas, as múltiplas representações
espaciais que é conveniente distinguir, quaisquer que sejam sua configuração e
sua escala, de maneira a dispor de um instrumental de ação e de reflexão. Isso
é que deveria ser a razão de existir da geografia.
E
torna-se indispensável que os homens saibam pensar o espaço.
Vai-se
à escola para aprender a ler, a escrever e a contar. Por que não para aprender
a ler uma carta? Por que não para compreender a diferença entre uma carta em
grande escala e uma outra em pequena escala e se perceber que não há nisso
apenas uma diferença de relação matemática com a realidade, mas que elas não
mostram as mesmas coisas? Por que não aprender a esboçar o plano da aldeia ou
do bairro? Por que não representam sobre o plano de sua cidade os diferentes
bairros que conhecem, aquele onde vivem, aquele onde os pais das crianças vão
trabalhar, etc.? Por que não aprender a se orientar, a passear na floresta, na
montanha, a escolher determinado itinerário para evitar uma rodovia que está
congestionada?
O
discurso geográfico escolar que foi imposto a todos no fim do século XIX e cujo
modelo continua a ser reproduzido hoje, quaisquer que pudessem ter sido, aliás,
os progressos na produção de idéias científicas, se mutilou totalmente de toda
prática e, sobretudo, foi interditada qualquer aplicação prática. De todas as
disciplinas ensinadas na escola, no secundário, a geografia, ainda hoje, é a
única a aparecer, por excelência, como um saber sem a menor aplicação prática
fora do sistema de ensino. Nenhuma esperança de que o mapa possa aparecer como
uma ferramenta, como um instrumento abstrato do qual é preciso conhecer o
código para poder compreender pessoalmente o espaço e nele se orientar ou
admiti-lo em função de uma prática. Nem se pensar que a carta possa aparecer
como um instrumento de poder que cada qual pode utilizar se sabe interpretá-la.
A carta deve permanecer como prerrogativa do oficial, e a autoridade que ele
exerce em operação sobre "seus homens" não se deve somente ao sistema
hierárquico, mas ao fato de que ele só é quem sabe ler a carta e pode decidir
os movimentos, enquanto aqueles que ele mantém sob suas ordens não o sabem.
Provavelmente
esse corte radical que o discurso geográfico escolar e universitário estabelece
em face de toda prática, essa ocultação de todas as análises do espaço, na
grande escala, que é o primeiro passo para apreender cartograficamente a
"realidade", resulta, em boa parte, da preocupação, inconsciente, de
não se renunciar a uma espécie de encantamento patriótico, de não arriscar o
confronto da ideologia nacional com as contradições das realidades.
A colocação de
um poderoso conceito obstáculo: a região personagem
Com
seu Quadro da geografia da França (1905), modelo tantas vezes retomado por
tantas teses, cursos e manuais ou com os quinze tomos da Geografia universal
(A. Colin) cuja concepção ele influenciou, Vidal de La Blache introduziu a
idéia das descrições regionais aprofundadas, que são consideradas a forma, a
mais fina, do pensamento geográfico. Ele mostra como as paisagens de uma
"região" são o resultado da superposição ao longo da história, das
influências humanas e dos dados naturais. Mas em suas descrições, Vidal dá
maior destaque para as permanências, a tudo aquilo que é herança duradoura dos
fenômenos naturais ou de evoluções históricas antigas. Em contrapartida, ele
baniu, em suas descrições, tudo que decorre da evolução econômica e social
recente, de fato, tudo o que tinha menos de um século e traduzia os efeitos da
"revolução industrial". Claro, Vidal de La Blache combateu a tese
"determinista", segundo a qual os "dados naturais" (ou um
deles) exercem uma influência direta e determinante sobre os "fatos
humanos" e ele dá um papel capital à história para avaliar as diversas
maneiras pelas quais os homens estão em relação com os "fatos
físicos".
(...)
Após Vidal, que levantou o plano de uma volumosa Geografia Universal, a
descrição geográfica de qualquer país, que seus discípulos irão realizar,
consistirá em apresentar as diferentes "regiões que o compõem" e a
descrevê-las, umas após as outras. Esse método, que não provocou críticas,
conheceu um sucesso considerável no mundo inteiro e fez o renome da escola
geográfica francesa. A geografia regional é imposta como a "geografia por
excelência": não associaria a ela, estreitamente, a um só tempo, a
"geografia física" e a "geografia humana"? Esse
procedimento da geografia regional consiste em constatar como evidência a
existência, num país, de um certo número de regiões e descrevê-las, umas após
as outras, ou a analisar somente uma delas no seu relevo, seu clima, sua
vegetação, sua população, suas cidades, sua agricultura, sua indústria, etc.,
cada uma considerada como um conjunto contendo outras regiões menores. Esse
procedimento impregna, hoje, todo o discurso sobre a sociedade, toda a reflexão
econômica, social e política, quer ela proceda de uma ideologia "de
direita" ou "de esquerda". É um dos obstáculos capitais que
impedem de colocar os problemas da especialidade diferencial, pois admite-se,
sem discussão, que só existe uma forma de dividir o espaço.
É
de fato, um subterfúgio particularmente eficaz, pois ele impede de apreender
eficazmente as características espaciais dos diferentes fenômenos econômicos,
sociais e políticos. De fato, cada um deles tem uma configuração geográfica
particular que não corresponde à da "região".
Fruto
do pensamento vidaliano, a "região geográfica", considerada a
representação espacial, senão única, ao menos fundamental, entidade resultante,
pode-se dizer, da síntese harmoniosa e das heranças históricas, se tornou um
poderoso conceito-obstáculo que impediu a consideração de outras representações
espaciais e o exame de suas relações.
A
consagração pelos geógrafos da região-personalidade, organismo coletivo ou
mininação da região-personagem histórica, forneceu a garantia, a própria base,
de todos os geografismos que proliferam no discurso político.
Enquanto
seria politicamente mais sadio e mais eficaz considerar a região como uma forma
espacial de organização política (etimologicamente, região vem de regere, isto
é, dominar, reger), os geógrafos acreditam na ideia de que a região é um dado
quase eterno, produto da geologia e da história. Os geógrafos, de algum modo,
acabaram por naturalizar a ideias de região: não falam eles das regiões
calcárias, de regiões gramíticas, de regiões frias, de regiões florestais? Eles
utilizam a noção de região, que é fundamentalmente política, para designar
todas as espécies de conjuntos espaciais, quer sejam topográficos, geológicos,
climáticos, botânicos, demográficos, econômicos ou culturais.
As intersecções
de múltiplos conjuntos espaciais
Basta
folhear um Atlas ou um Manual consagrado a um mesmo continente, a um mesmo
Estado o a uma porção qualquer do espaço terrestre, para se perceber que as
configurações espaciais dos fenômenos geológicos, climáticos, demográficos,
econômicos, culturais não coincidem uns com os outros, na maioria dos casos; ao
contrário, elas formam uma série de interseções complexas.
Uma
das razões de ser fundamentais da geografia é a de tomar conhecimento da
complexidade das configurações do espaço terrestre. Os fenômenos que se podem
isolar pelo pensamento, segundo as diferentes categorias científicas (geologia,
climatologia, demografia, economia, etc.), não se ordenam espacialmente segundo
grandes compartimentos, as regiões sobre as quais os professores de geografia
proclamam a realidade, mas ao contrário se superpõem, e freqüentemente de
maneira bastante complicada. É levando em consideração essas múltiplas
interseções entre as configurações precisas dos diferentes fenômenos, que se
pode agir mais eficazmente, pois isso permite evitar, por exemplo, aquelas que
constituem obstáculo à ação que se quer empreender. No coração de uma mesma
"região", lugares vizinhos e aparentemente idênticos podem, na
realidade, oferecer condições bem diversas, e é o exame das configurações
espaciais precisas de diferentes fenômenos que permite escolher a implantação
(ou o itinerário) mais vantajosa.
A
diversidade da realidade, na superfície do globo, não é somente a que descreve
o geólogo ou a que analisa o economista: é a combinação de todas essas
representações parciais que permite tomar conhecimento dela, da forma a menos
imperfeita.
(...)
Mas o sucesso da idéia de "região" traz em si também poderosas razões
ideológicas que estão ligadas ao sentimento nacional: cada Estado, cada
"país" é quase como se fosse a reunião de um certo número de
"regiões". Cada "região", descrita como uma entidade viva
muito antiga, senão eterna, aparece como um dos órgãos do corpo da pátria. A
idéia de "região", a idéia de que só há uma forma de se conceber a
repartição de um espaço e, em última análise, a idéia de que o espaço é
compartimentado pela Natureza, por Deus, de acordo com linhas simples e
estáveis, traduz o poderio ideológico da geografia dos professores. Mas essas
representações tranqüilizantes, que são o fundamento de tantos discursos e
rompantes líricos, não são operacionais. Desde que não se trate mais de discursos
ou de manuais escolares, mas de ação, é preciso entender, para não fracassar,
que as configurações do espaço são bem mais complexas que a repartição simples
em grandes "regiões" da geografia dos professores.
O escamoteamento
de um problema capital: a diferenciação dos níveis de análise espacial
Para
a maioria dos geógrafos, a dimensão do território levado em consideração e os
critérios dessa escolha, não parecem dever influenciar fundamentalmente suas
observações e seus raciocínios. Contudo, basta folhear um manual de geografia
ou a coleção de uma revista geográfica para se perceber que as ilustrações
cartográficas são de tipos extremamente diferentes, pois essas cartas têm
escalas muito desiguais.
Entre
todas essas cartas de escala tão desigual, não há somente diferenças
quantitativas, de acordo com o tamanho do espaço representado, mas também
diferenças qualitativas, pois um fenômeno só pode ser representado numa
determinada escala; em outras escalas ele não é representável ou seu
significado é modificado. É um problema essencial, mas difícil.
A realidade
aparece diferente segundo a escala das cartas, segundo os níveis de análise
Como
certos fenômenos não podem ser apreendidos se não considerarmos extensões
grandes, enquanto outros, de natureza bem diversa, só podem ser captados por
observações muito precisas sobre superfícies bem reduzidas, resulta daí que a
operação intelectual, que é a mudança de escala, transforma, e às vezes de
forma radical, a problemática que se pode estabelecer e os raciocínios que se
possa formar. A mudança da escala corresponde a uma mudança do nível da
conceituação.
Uma etapa
primordial no caminho da investigação geográfica: a escolha dos diferentes
espaços de conceituação
Ao
plano do conhecimento não há nível de análise privilegiado, nenhum deles é
suficiente, pois o fato de se considerar tal espaço como campo de observação
irá permitir apreender certos fenômenos e certas estruturas, mas vai acarretar
a deformação ou a ocultação de outros fenômenos e de outras estruturas, das quais
não se pode, a priori, prejulgar o papel e, portanto, não se pode negligenciar.
É por isso indispensável que nos coloquemos em outros níveis de análise,
levando em consideração outros espaços. Em seguida é necessário, realizar a
articulação dessas representações tão diferentes, pois elas são função daquilo
que se poderia chamar espaço de conceituação diferente.
No
plano, não mais do conhecimento, mas da ação (urbanística ou militar), existem
níveis de análise que é preciso privilegiar, pois eles correspondem a espaços
operacionais, em decorrência das estratégias e das táticas elaboradas.
O
problema das escalas é portanto primordial para o raciocínio geográfico.
Contrariamente a certos geógrafos que declaram que "se pode estudar um
mesmo fenômeno em escalas diferentes", é preciso estar consciente que são
fenômenos diferentes porque eles são apreendidos em diferentes níveis de
análise espacial.
Os
diferentes espaços de conceituação, aos quais precisa se referir o geógrafo,
devem ser objeto de um esforço de diferenciação e de articulação sistemáticos.
As diferentes
ordens de grandeza e os diferentes níveis da análise espacial
A
articulação dos diferentes níveis de análise, portanto, interseções de
conjuntos espaciais de muitas diversas categorias científicas é, na realidade,
um raciocínio de tipo estratégico; sua adequação e seus erros são sancionados
pela vitória ou pela derrota em face das finalidades que nos propúnhamos
atingir, ele corresponde à articulação daquilo que se chama, em todos os exércitos,
a estratégia e a tática (há, aliás diferentes níveis estratégicos e diferentes
níveis táticos que correspondem às diferentes ordens de grandeza de conjuntos
espaciais). Mas esse expediente operacional, ao qual devem ser afeitos os
oficiais do estado-maior, não se limita ao domínio dos militares. Ele é eficaz,
indispensável mesmo, em muitos outros domínios - na verdade, para todos os
tipos de reflexões e empreendimentos, desde que precisem considerar o espaço, o
que acontece com a maioria das ações humanas.
A
distinção sistemática de diferentes níveis de análise espacial é um
instrumental conceitual relativamente simples, que pode ajudar cada qual a até
ver mais claro, a melhor compreender o que se passa. Mas se trata de intervir
numa situação local, para modificá-Ia, e sobretudo se os objetivos são
complexos, a articulação desses diferentes níveis de análise é um procedimento
difícil, arriscado e seria perigoso fazer acreditar que qualquer um pode se
improvisar como estrategista e geógrafo. Trata-se, com efeito, de levar em
consideração um grande número de fatores geológicos, climáticos, pedológicos,
demográficos, sociais, econômicos, políticos, culturais que são trunfos,
obstáculos, handicaps e que se misturam de forma tanto mais complicada por terem,
cada um, sua própria configuração espacial.
As estranhas
carências epistemológicas da Geografia universitária
Enquanto
em outras disciplinas é, desde há muito, julgado indispensável definir uma
problemática, os geógrafos continuaram a fazer como se eles só tivessem que
ler, sem problemas, "o grande livro aberto da natureza".
Em
suma, a maior parte dos geógrafos teoriza o menos possível, e se contenta em
afirmar, sem pejo, que "a geografia é a ciência da síntese", chegando
a convir, às vezes, que a "geografia não pode se definir, nem por seu
objetivo, nem por seus métodos, mas sobretudo por seu ponto de vista1”. Tais
declarações traduzem, a um só tempo, um desconhecimento real das
características não menos sintéticas das disciplinas às quais recorrem os
geógrafos, seu isolamento (pois tais propósitos - deveriam ter provocado uma
indignação) e sua pequena preocupação com problemas teóricos, mesmo os mais
fundamentais, que deveriam abordar todas as ciências e há muito tempo. Aliás,
numerosos geógrafos não escondem suas prevenções com respeito às “considerações
abstratas" (especialmente às dos economistas, sociólogos) e acham uma
glória a sua predileção pelo "concreto". Alguns deles não proclamaram "a geografia, ciência do
concreto" sem ter dúvidas sobre os sorrisos que uma tal declaração não deixará de provocar, ao menos
quando ela é conhecida fora do meio dos geógrafos, o que não é, finalmente,
bastante raro? Mas sumárias como possam ser, essas declarações "epistemológicas"
que procedem de mestres no final de suas carreiras, têm sido relativamente
raras até esses últimos anos e os geógrafos, só de quando em quando, se
perguntam o que pode ser a geografia. Um deles2, e não dos menos ilustres,
diante dos seus colegas reunidos em colóquio, caracterizou a geografia como
"um espírito terra-a-terra".
Foi
apenas de alguns anos para cá que um certo número de geógrafos começou a tomar
consciência dos problemas que coloca a geografia. Disso resultou uma seqüência
de reflexões sobre sua disciplina, mas todas camuflaram, até agora, o papel da
geografia como instrumento do poder político e militar.
Uma prática
universitária que é, cada vez mais, a negação do projeto global
Já
não é sem interesse constatar que se faz silêncio sobre a geografia, embora o
estatuto que lhe atribuem os geógrafos coloque em causa, implicitamente, na
organização geral dos conhecimentos. Mas esse silêncio aparece ainda como mais
surpreendente, quando se atenta a isso que é a evidência: enquanto eles
propalam, quase unanimemente, que a razão de ser da geografia é o estudo das
interações entre “fatos físicos" e "fatos humanos", em sua
prática os geógrafos parecem se preocupar muito pouco com essas interações: uns
só se Preocupam com a "geografia física" (esta acaba por constituir o
essencial da disciplina, em certos sistemas de ensino, como o da URSS, Por
exemplo), enquanto outros se ocupam essencialmente com a “geografia
humana". A prática da maioria dos geógrafos aparece, portanto, como a
negação dos princípios que eles afirmam.
Claro, existe a
"geografia regional", esse terceiro pedaço resultante da divisão
oficializada da geografia. Essa geografia regional, que é encarregada de manter
"a unidade" da geografia, reúne, a propósito desta ou daquela parte
do espaço terrestre, elementos diversos que são extraídos do discurso do
geólogo, do climatólogo, do técnico em hidráulica, do botânico, etc., como
também do demógrafo, do etnólogo, do economista e do sociólogo. A diversidade
desses empréstimos é habitualmente considerada a prova de um expediente que
apreenderia efetivamente as interações entre fenômenos estudados,
especificamente, por diversos especialistas.
Essa
ruptura entre "geografia física" e "geografia humana", que
se manifesta ainda com maior fracionamento no discurso enciclopédico da
"geografia regional", essa negação na prática do ensino e da pesquisa
do projeto que pretendem perseguir os geógrafos, não só traduz as dificuldades
reais de sua empreitada, mas também, e sobretudo, sua desconfiança, ou até sua
recusa, em relação à toda reflexão epistemológica. Da mesma forma que pretendem
apreender diretamente aquilo que chamam, de uma forma bem sintomática, de os
"dados" geográficos, sem se importar com os pressupostos de suas
observações, confundindo assim o objeto real e o objeto de conhecimento, os
geógrafos também consideram que os diversos elementos que eles extraem do
discurso dos diferentes especialistas são simples "dados". No
entanto, o geólogo, o climatólogo, o botânico, o demógrafo, o economista, o
sociólogo, dos quais a geografia utiliza uma parte dos trabalhos, colocaram
cada um deles em utilização, um método e um instrumental conceitual que são
específicos de uma ciência particular, cujos objetivos não são os da geografia.
O geógrafo, que não se preocupa muito com a construção dos conceitos e que
emprega constantemente noções extremamente vagas (região, país ...); utiliza as
produções das outras disciplinas sem questionar as mesmas, da mesma forma que
não coloca questões a propósito da geografia.
Ausência de
polêmica entre geógrafos: ausência de vigilância a respeito da Geografia
A
transformação de um saber, que foi explicitamente político, num discurso que
nega seu significado político, que aceita renunciar à eficiência e que se
amputou das ciências sociais, pode parecer uma operação impossível de se
realizar, ao menos sem polêmicas muito violentas. Elas não se manifestam nunca.
Contudo,
essa carência epistemológica dos geógrafos, não pode ser explicada somente pelo
mecanismo de reprodução das idéias dos mestres no sistema universitário, nem
pelo caráter mais fortemente mistificador de sua posição teórica.
O
sistema universitário não impediu as polêmicas em outras disciplinas. Em
geografia, conflitos de pessoas, sim, mas nada de problemas (ou quase nada ...
). Assim, quando após 1950 um geógrafo como Pierre George começou a estabelecer
pontes com a sociologia e a economia, encetou o estudo dos fenômenos
industriais e urbanos que estavam ocultos desde Vidal e, "pior
ainda", poderíamos dizer, mostrou a importância da distinção entre países
capitalistas e países socialistas, essa orientação que ia, no entanto,
radicalmente contra a geografia vidaliana, suscitou muitas rusgas de corredor,
mas nenhum debate teórico.
(...)
Durante muito tempo, os geógrafos se preocuparam, quase que exclusivamente, com
o "habitat" rural e com a agricultura (influência do clima). As
cidades não eram lembradas senão por sua relação com seu sítio topográfico
original e sua situação, em face dos principais contrastes de relevo da região
circundante ignorada, ao menos reduzida à enumeração de localizações dos
centros industriais, em função das jazidas de matérias-primas.
Essa
falta de vigilância em relação à geografia é tanto mais chocante quanto se
utiliza cada vez mais sua linguagem, não somente na mídia, mas também nas
numerosas disciplinas científicas. Todo o mundo fala de "país", de
"regiões" sem tomar o menor cuidado com o caráter tão etéreo dessas
noções elásticas e escorregadias, e com as conseqüências desagradáveis que
podem advir de sua utilização, para o rigor do raciocínio. Se notarmos bem, é
chocante constatar, com que ingenuidade, com que falta de espírito crítico, o
historiador, o economista e o sociólogo utilizam os argumentos geográficos nos
seus próprios discursos: evocados, aliás, não sem alguma condescendência, os
"dados geográficos" são aceitos sem a menor discussão, como se não
tivessem senão de se inclinar diante dos "imperativos geográficos".
Ora, os "dados" geográficos não são fornecidos por Deus, mas por um
tal geógrafo que, não contente de os ter apreendido a uma determinada escala,
os escolheu e os classificou numa certa ordem; um outro geógrafo, estudando a
mesma região ou abordando o mesmo problema numa outra escala, forneceria,
provavelmente, "dados" bem diferentes. Quanto aos famosos "imperativos"
geográficos, dos quais os economistas, por exemplo, são tão ávidos, os
geógrafos sabem sem dúvida (especialmente desde Vidal de La Blache, o que foi
uma das aquisições mais positivas) que os homens neles se acomodam de modo bem
diferente, e que aí não há o mínimo "determinismo" estrito, mas bem
ao contrário, um "possibilismo".
(...)
A conduta dos geógrafos não teria permanecido o que ainda é hoje se ela tivesse
sido objeto de polêmicas e de debates.
Durante
séculos, até o fim do XIX, antes de aparecer o discurso geográfico universitário,
a geografia era unanimemente percebida como um saber explicitamente político,
um conjunto de conhecimentos variados indispensável aos dirigentes do aparelho
de Estado, não somente para decidir sobre a organização espacial deste, mas
também para preparar e conduzir as operações militares e coloniais, conduzir a diplomacia
e justificar suas ambições territoriais. Contudo, a partir de Vidal de La Blache,
fundador da escola geográfica francesa, e a partir do Quadro da geografia da França
(1905), imediatamente considerada como um modelo de descrição e de raciocínio
geográficos, o discurso dos geógrafos universitários (é o que, desde então, se
chama "geografia") vai excluir toda referência ao político e mesmo a
tudo aquilo que faz pensar nisso - a ponto de terem sido
"esquecidas", durante muitos decênios, as cidades e a indústria.
Desde os anos cinqüenta, os geógrafos - ao menos aqueles que se limitam à
geografia humana - se preocupam com fenômenos econômicos e sociais, a ponto de
alguns deles confundirem sua disciplina com a economia, com a sociologia e
desejarem ver a geografia se fundir no conjunto das ciências sociais. Mas, para
a quase totalidade dos geógrafos universitários, os problemas geopolíticos -
que até o final do século XIX eram uma das razões de ser fundamentais da geografia
- permanecem um verdadeiro tabu. Nada de abordar os problemas da guerra e os da
rivalidade entre os Estados: não é científico, dizem eles, não é geografia!
Concepções mais
ou menos amplas da geograficidade, um outro Vidal de La Blache
Para
compreender o que foi, de fato, a evolução do pensamento geográfico na França
desde o início do século XIX, para estar em condições de discernir suas
características epistemológicas atuais, a concepção de geograficidade, à qual
os geógrafos se referem mais ou menos implicitamente, é preciso atingir o
porquê, no quadro de sua corporação, de certos fenômenos espaciais serem
considerados dignos de interesse, enquanto outros, que se desenrolam da mesma
forma no espaço, sobre o terreno e dos quais todo mundo fala, não são
considerados dignos de uma análise científica; é, essencialmente, o caso dos
fenômenos políticos e militares. Elisée Reclus lhes dedicava uma enorme
atenção, o que, na época, nada tinha de extraordinário: no século XIX a idéia
que se fazia da geografia implicava levar em consideração esses problemas, numa
proporção bem racional do espaço político, dos homens e dos recursos que ali se
encontravam; Humboldt, considerado, com justiça, o primeiro grande geógrafo
moderno por causa de sua grande obra O cosmos, publicou também (em francês)
cinco volumes do Ensaio político sobre o reino da Nova Granada (1811) e do
Ensaio político sobre a ilha de Cuba (1811). No início do século XX, Ratzel
impunha a Antropogeografia e a Geografia política: nessa Alemanha onde
apareceu, pela primeira vez no mundo, a geografia universitária, esta foi então
percebida como uma disciplina estreitamente ligada às questões políticas e militares.
Na
França, a geografia universitária (com raríssimas exceções apenas, que a corporação
esqueceu cuidadosamente) vai rejeitar, desde seus primeiros passos, esses
problemas, para se afirmar como ciência, como se evocá-los fosse correr o risco,
de desacreditá-la como ciência.
Como
explicar a abertura da geograficidade que se manifesta no raciocínio de A
França de Leste,
a diversidade dos fenômenos econômicos, sociais e políticos que Vidal considera
nesta obra? É que não se trata de uma descrição geográfica do tipo universitário,
conforme a idéia que se fazia então da geografia na universidade, mas de um
raciocínio político, de uma demonstração geopolítica. Não se trata de descrever
e de explicar os fenômenos julgados dignos de serem tratados, levando-se em
consideração tradições da corporação, de suas relações com outras disciplinas
ou dos cânones de cientificismo, mas de demonstrar que a Alsácia e a Lorena,
anexadas pelo Império alemão em 1871, devem ser anexadas à França. Aliás, desde
a primeira frase, Vidal previne que "não há uma só linha desse livro que
não se ressinta das circunstâncias nas quais ele foi redigido". Essas
circunstâncias, que Vidal não precisa, quais seriam elas? Em 1916, em plena
guerra, não era necessário dizer aos franceses as razões pelas quais essas
províncias deviam retornar à França. Mas os dirigentes dos Estados Aliados, os
americanos em particular, não ficaram assim tão convencidos, pois a maior parte
das populações da Alsácia e da parte da Lorena anexada em 1871 é de fala
germânica: segundo o "princípio das nacionalidades", elas deveriam,
portanto, ficar para a Alemanha. O presidente Wilson, que foi professor de história
e de ciência política, estima até que, em caso de vitória dos Aliados, seria preciso,
ali como alhures, proceder a um referendo, solução que o governo francês recusa.
A tese francesa deve portanto ser sustentada por uma séria argumentação. Seria
interessante saber se Vidal se pôs espontaneamente a trabalhar ou o fez a pedido
do governo. Não importa: Vidal não redige um relato circunstancial, mas um grande
livro, aquele que eu acredito ser sua verdadeira grande obra.
Historiadores
que querem uma geografia modesta
Os
geógrafos universitários e o espectro da geopolítica
A partir do fim do século XIX, desde
que existe na França uma corporação dos geógrafos universitários, esta se
caracteriza por sua preocupação em afastar os raciocínios geopolíticos que
haviam sido, em larga medida, durante séculos, a razão de ser de uma geografia
que não era ainda ensinada a estudantes, futuros professores, mas a homens de
guerra e a grandes funcionários do Estado. De outro lado, foram essas
preocupações políticas e militares que justificaram, ou tornaram possível, a
confecção das cartas - enorme tarefa - sem as quais os geógrafos universitários
não poderiam dizer grande coisa. Mas dessa geografia estreitamente ligada à
ação e ao poder, os geógrafos universitários se abstiveram, quase todos, de
falar e fizeram como se ela estivesse morta e enterrada, levando-se em
consideração que era preciso exorcizar suas eventuais reaparições. Poder-se-ia
dizer que a geopolítica é o espectro que ronda a geografia humana há cerca de
um século, e o horror e o desgosto que ela provoca se manifestam ainda hoje1.
Mas geralmente não se pronuncia o nome, como vale mais a pena fazer com aqueles
que voltam do além!
Como explicar essa rejeição da
geopolítica pelos geógrafos universitários franceses? Num primeiro momento,
talvez pelo fato de serem os geógrafos, próximos do governo e do estado-maior,
de um meio social bem diferente; é talvez um dos aspectos da rivalidade dos
universitários e dos militares, que caracteriza a vida política e cultural
francesa, bem diferente do que acontecia na Alemanha, por exemplo.
Desde os anos cinqüenta, as
concepções da geograficidade se ampliaram, claro, e se os geógrafos
universitários levam em consideração problemas urbanos e industriais e evocam
as estruturas econômicas e sociais, eles querem ainda ignorar os problemas
políticos, mais ainda as questões militares, e a palavra geopolítica é também para
eles um verdadeiro espectro que evoca as empresas hitlerianas.
Rejeitando,
sobretudo por instigação dos historiadores, as preocupações políticas que
haviam sido claramente evidentes e, durante séculos, uma das razões de ser da
geografia antes que ela fosse ensinada nas universidades (sobretudo para formar
professores de liceu), os primeiros geógrafos universitários acreditaram
assegurar a cientificidade de uma disciplina nova e seus sucessores estão,
ainda hoje, persuadidos de que fazer alusão a um problema geopolítico os
desqualificaria enquanto cientistas. Quanto mais a "velha" geografia
estava, próxima dos militares e dos chefes de Estado, mais a geografia
universitária devia se afirmar desinteressada para ser considerada ciência.
Em
1965, Pierre George, que contribuiu enormemente para a difusão da
geograficidade, publica A geografia ativa para mostrar no que pode contribuir a
geografia para a "administração dos bens e dos homens nessa segunda metade
do século XX".
Marx e o espaço
negligenciado
A
institucionalização da geografia dos professores na qualidade de discurso
pedagógico "inútil", sistematicamente despolitizado, não favoreceu o
desenvolvimento da vigilância com respeito aos geógrafos. E, no entanto, ela
seria ainda mais necessária. Como é que historiadores e todos aqueles que se
confrontaram com o problema do Estado não perceberam que a geografia, também,
apreende o Estado e por uma de suas principais características essenciais, sua
estrutura espacial, sua extensão, suas fronteiras? De fato, parece que esse
silêncio cúmplice que continua a envolver a geografia, o qual se utiliza de
numerosos clichês e argumentos, coloca um problema ainda bem mais profundo.
A
geografia é uma representação do mundo. Mas não se fala disso nos meios que
são, no entanto, ciosos de eliminar todas as mistificações e de denunciar todas
as alienações. Os filósofos, que tanto escreveram para julgar a validade das
ciências, e que exploram hoje a arqueologia do saber, conservam ainda, em
relação à geografia, um silêncio total, embora essa disciplina devesse, mais
que qualquer outra, atrair suas críticas. Indiferença? Falta de debate para
arbitrar entre os geógrafos? Não seria antes uma inconsciente conivência?
É,
evidentemente, inútil destacar a importância das transformações que o marxismo
provocou na história, na economia política e em outras ciências sociais. Ele
trouxe não somente uma problemática e um instrumental conceitual, como também
determinou, em larga medida, o desenvolvimento dessa polêmica epistemológica e
dessa vigilância quanto ao trabalho dos historiadores e economistas; essa
polêmica e essa vigilância se manifestaram de início, fora da Universidade,
rios meios mais politizados e também, em seguida, no interior do mundo
universitário. Ora, até os anos sessenta, os marxistas não haviam ainda se
preocupado com a geografia, embora se trate de um saber cujo significado
econômico, social e político é considerável. Evidentemente, se considera, como
na URSS, que a geografia provém, no essencial, das ciências naturais, a
fraqueza, senão a ausência dessas relações com o marxismo, não colocaria
problemas, a tal ponto. Mas quer ela seja discurso mistificador, cuja função é
considerável, ou saber estratégico, cujo papel não é menos considerável, a
geografia tem por objeto as práticas sociais (políticas, militares, econômicas,
ideológicas...) em relação ao espaço terrestre.
O
pouco interesse que Marx demonstra em relação aos problemas geográficos tem,
ainda hoje, graves conseqüências. Para os marxistas, o essencial da argumentação
política, quer se trate de problemas regionais, nacionais ou internacionais, se
define em relação ao tempo, se expressa em termos históricos, mas ela só
raramente faz referência ao espaço e, ainda assim, de uma forma muito alusiva e
negligente. É contudo o espaço que é o domínio estratégico por excelência, o
lugar, o terreno onde se defrontam as forças em presença, e onde se travam as
lutas atuais.
Sintomas das
dificuldades do marxismo em geografia
Ora,
hoje ainda somos obrigados a constatar que, se há marxistas entre os geógrafos,
não existe ainda verdadeiramente uma geografia marxista. Talvez ela esteja a
ponto de aparecer? Mas entre as ciências sociais, a geografia é o setor em que
a análise marxista tem a maior dificuldade de se desenvolver. Evidentemente,
isso é diferente para especialistas de outras disciplinas que encontram, nas
obras dos grandes teóricos do marxismo, matéria para numerosas citações, para
amplos comentários, para múltiplas reflexões polêmicas e exegeses, enquanto os
geógrafos marxistas não têm muitas citações ilustres nas quais eles possam se
inspirar.
Uma
outra dificuldade mais difundida da análise marxista em geografia se manifesta
em numerosos trabalhos que decorrem, principalmente, da geografia humana: eles
se caracterizam pelo enorme lugar ocupado por uma reflexão histórica, orientada
para a análise das relações de produção e lutas de classes. Esse discurso de
tipo marxista e que não é, necessariamente, original, é superposto com
freqüência, pura e simplesmente, a um discurso de geografia completamente
clássico: a análise marxista dos problemas espaciais é camuflada por um
discurso que decorre, de fato, da história ou da economia política. Esse
desvio, num certo sentido, em direção à reprodução de discursos que são melhor
construídos, e cujo significado político é mais claro, coloca, se refletirmos
bem, o problema da responsabilidade do geógrafo; sobretudo aqueles que,
referindo-se ao marxismo, deveriam considerar o seu dever em participar das
lutas sociais da forma mais eficaz. É de se notar que esse lugar importante que
ocupa o discurso histórico no bojo do discurso geográfico não é, evidentemente,
específico dos geógrafos de influência marxista. Na medida em que os geógrafos
perceberam que a situação que eles descrevem é o resultado de toda uma série de
evoluções que se combinam (a das formas de relevo, do povoamento, a de diversas
atividades econômicas ... ), o procedimento histórico toma, inevitavelmente, um
grande lugar na explicação geográfica.
Contudo,
esse desvio dos geógrafos de influência marxista em direção à reprodução de um
discurso história-ciências sociais, tem um duplo inconveniente: de um lado esse
discurso histórico não coloca claramente em causa o discurso da geografia
vidaliana; ele vem, antes, completá-lo, coroá-lo e, por essa via, ele lhe permite
continuar a funcionar como meio de bloqueamento e de mistificação; de outro lado,
esse discurso histórico permite continuar a camuflar os problemas teóricos que
é necessário colocar em geografia. Isso
contribui para entreter, em amplos meios, a idéia de uma geografia, discurso
pedagógico "inútil" mas inofensivo.
Princípios de uma geografia marxista ou o fim da
geografia¿
É
preciso também levar em consideração as condições climáticas, pedológicas,
topográficas, que não derivam, fundamentalmente, da análise dos marxistas e que
estes tendem a negligenciar, em prol do estudo das relações de produção. Essas
últimas são, evidentemente, fundamentais mas, contrariamente à tendência dos
marxistas que reduzem ao Econômico as características e as contradições das
diversas sociedades, não se podem reduzir os problemas políticos, e mormente os
problemas de poder, às modalidades de apropriação dos meios de produção.
Os
geógrafos marxistas contribuíram, sobretudo, na análise dos problemas urbanos;
os fenômenos de segregação social, de apropriação dos terrenos, de contradição
entre o interesse coletivo e os apetites privados inserem-se, com efeito, de
modo particularmente claro e simples, na problemática marxista. Ela fez suas
provas nesse domínio.
Contudo,
por mais importante que ela possa ser, a análise marxista dos fenômenos urbanos
não pode se apossar, com exclusividade, da geografia marxista. Primeiro, essas
pesquisas podem, com justiça, ser reivindicadas pelos urbanistas e sociólogos.
Não se trata, bem entendido, de fazer corporativismo universitário, mas esse não
é o meio de fazer avançar pela crítica os problemas dos geógrafos, o de
imputar, a seu crédito, pesquisas que, na realidade, procedem de outras
disciplinas, nas quais o estatuto epistemológico é bem mais avançado que o da
geografia.
De
outro lado, os geógrafos de influência marxista não são os únicos a estudar os
problemas urbanos. Outros geógrafos, como outros sociólogos, outros
economistas, que não se incluem absolutamente no marxismo e que não procuram
sequer parecer "de esquerda", empreendem também essa análise das
diversas formas da crise urbana, sem se referirem sistematicamente às
contradições do sistema capitalista, sem apelar para sua destruição, falam,
também eles, de "dominação", de segregação social, etc. Desses
geógrafos, os marxistas dirão que são "inconseqüentes"... O que quer
que seja, é claro que a análise dos problemas urbanos procede, numa larga
escala, de um instrumental conceitual marxista ou marxiano.
De
início, apesar do papel crescente das cidades na vida econômica e social e na
organização do espaço, a geografia deve levar em consideração muitos outros
espaços além dos da cidade ou aqueles que validamente se podem considerar como
estruturados por uma rede de cidades. É preciso analisar a diversidade dos
espaços rurais, onde as condições naturais e os fatores culturais são muito
importantes. Nesse vasto domínio, os métodos de análise urbana não são
operacionais. O estudo geográfico dos fenômenos urbanos, mesmo levado a
diferentes níveis de análise, não parece, contudo, poder constituir mais do que
uma parte somente da geografia, sobretudo se a considerarmos como saber
estratégico ou análise científica, derive ela ou não do marxismo. Não é somente
transferindo, extrapolando a problemática que contempla com eficácia as
estruturas econômicas e sociais, que se avançará nos métodos de análise do
espaço, que colocam ainda graves problemas, difíceis de circunscrever
convenientemente.
Os
sociólogos fazem malabarismos com a "produção" dos múltiplos espaços
sociais e mentais, os economistas fazem economia espacial, os historiadores
fazem a geo-história, enquanto os ecologistas se apoderam das relações
homem-natureza.
Para
muitos geógrafos universitários, o apossar-se dos problemas espaciais por parte
de disciplinas mais brilhantes, mais influentes, mais na moda, é a causa
principal e a manifestação capital da crise da geografia. Contudo, essas
disciplinas "rivais" que "tocam" no domínio dos geógrafos,
tratam dos problemas que eles não haviam ainda abordado, até agora.
Contudo,
a geografia não parece prestes a desaparecer na qualidade de disciplina
universitária e científica: ela se desenvolve com vigor, desde há pouco, em
países nos quais ela não tinha tido importância até agora, como disciplina de
ensino. Quanto mais o discurso dos geógrafos universitários tenha sido, durante
muito tempo, amputado de qualquer prática, mais esse novo desabrochar da
geografia está estreitamente ligado às pesquisas "aplicadas" e a
considerações mais ou menos explicitamente estratégicas.
Do
desenvolvimento da Geografia aplicada à “new geography”
Mas
desde alguns decênios, a pesquisa em geografia se desenvolve rapidamente nos
Estados Unidos, com recursos bastante consideráveis, seja nos organismos
universitários, seja no quadro de outras estruturas. De fato, essa geografia,
que não está ligada ao funcionamento de uma máquina para fabricar professores,
parece cada vez mais útil àqueles que estão à testa das grandes firmas e do
aparelho de Estado. Pois são eles que não somente propõem os contratos de
pesquisa, mas também providenciam os meios materiais e as facilidades de acesso
a informações confidenciais. Diferentemente da geografia universitária, onde as
pesquisas, assim como o ensino, foram concebidas como um saber pelo saber,
radicalmente amputado de toda prática, as pesquisas de geografia
"aplicada” são conduzidas em função de objetivos explícitos, seja para
propor uma solução técnica, mais ou menos parcial, seja para fornecer
informações que permitirão visualizar uma ação.
Nos
Estados Unidos, as pesquisas de geografia "aplicada" se desenvolveram
primeiro no prolongamento dos estudos de mercado, realizados pelos economistas,
que foram levados, por razões de eficácia, a apreender a dimensão espacial,
fator evidentemente essencial aos Estados Unidos. Muito cedo se impôs a idéia
de que era preciso analisar as zonas de influência das grandes cidades e a
irradiação dos serviços implantados em cada uma delas. De outro lado, operações
de desenvolvimento regional, como a do célebre Tennessee Valley Authority,
começada antes da Segunda Guerra Mundial, demonstraram o interesse de uma
análise geográfica. Enfim, a extensão planetária
dos interesses americanos, o fato de ter de visualizar intervenções rápidas nos
locais mais diversos, fizeram com que a pesquisa geográfica fosse considerada
uma ferramenta indispensável. As fotografias aéreas, e sobretudo aquelas tomadas por satélites, fornecem
centenas de milhares de documentos que é preciso analisar, "tratar”: a
operação "Skylab", que durou semanas, acumulou uma documentação
extraordinariamente mais variada e sobre um grande número de fenômenos
"naturais" e "humanos" para toda a superfície do globo, do
que se conseguiria empregando milhares de geógrafos durante anos!
O
interesse crescente que os mestres da geografia universitária dedicam aos
problemas de geografia aplicada levou-os a perceber as insuficiências de
....seus estudantes.
É
nos Estados Unidos principalmente e em outros países onde a geografia escolar e
universitária não se desenvolveu muito, que as necessidades da pesquisa em
geografia aplicada conduziram, em boa proporção, a um conjunto de reflexões e
de trabalhos teóricos que, cedo, foi batizado "New Geography". Este
foi apresentado por seus participantes como o resultado de uma ruptura epistemológica
em face do discurso literário e subjetivo da geografia "tradicional",
e como passagem da geografia à categoria das ciências exatas. De fato, essa
"New Geography", que é chamada também "geografia
quantitativa" é baseada numa formulação muito avançada em termos de modelo
matemático. Quanto mais o discurso da geografia universitária podia privilegiar
o exame de alguns fatores julgados cientificamente interessantes e podia evocar
suas combinações em termos qualitativos, tanto mais os métodos da geografia
aplicada obrigam a levar em consideração um bem grande número de fatores: é
preciso não somente dispor, para cada um deles, de um grande número de dados
estatísticos, repartidos convenientemente no espaço e no tempo, mas também
estabelecer um sistema de ponderação de seus papéis respectivos, para chegar à
representação estatística do resultado de suas interações nos diferentes
compartimentos que se traçam sobre a carta do espaço visado. Os métodos de
análise fatorial não podem ser elaborados para tratar de um grande número de
dados senão com o auxílio de poderosos computadores.
Geógrafos mais
ou menos proletarizados para pesquisas parcelares confiscadas por aqueles que
as pagam
Para
os geógrafos, encerrados até agora em sua função ideológica professoral, a
pesquisa aplicada é a possibilidade de se sentir útil para qualquer coisa,
sentimento muito profundo entre muitos deles. Têm eles o sentimento de se
religarem com a tradição dos geógrafos e de restabelecer, ao mesmo tempo,
relações com o poder e ligações entre saber e ação? É certo que a geografia
seja uma representação do mundo que os incita a brincar um pouco de demiurgo?
Bem
entendido, esses pesquisadores dispõem de meios materiais e facilidades de
informação que não teriam para uma pesquisa universitária, mas, pelos termos do
contrato que cada qual assinou, eles não estão mais livres para conduzir a sua
pesquisa a seu bel-prazer, nem, sobretudo, para divulgar os resultados. Esses
pertencem, por contrato, à administração, ao escritório de estudo, à empresa, à
organização internacional, que se reservam o direito de os manter secretos, ou
de difundi-los de forma mais ou menos confidencial. Muito fraca é a proporção
de trabalhos de geografia aplicada que são objeto de publicação.
Assim,
a maior parte dos geógrafos que participam de pesquisas desse gênero ignoram-se
uns aos outros e, sobretudo, o que é ainda mais grave, eles não podem comunicar
os resultados de suas pesquisas, nem comparar seu método. Certos pesquisadores
não sabem mesmo, muito bem, que utilização será efetivamente feita de seu
trabalho. A experiência que pode tirar cada geógrafo engajado nesse gênero de
pesquisa se acha, portanto, limitada e perde seu efeito de treinamento.
A
pesquisa "aplicada” se torna um mercado, onde uns e outros tentam se
colocar e se fazer bem, vistos pelos financistas. Não se fala nunca entre
colegas sobre os contratos que se obtiveram, pois não se quer fazer alarde
sobre a remuneração que se ganhou, nem indicar a outros os meios e manobras
seguidas. Toma-se cuidado, sobretudo, de não dar a conhecer os resultados de
uma pesquisa, a menos que tenha sido devidamente autorizado pelo organismo que
é proprietário, pois se teme, senão um processo, na melhor das hipóteses que
essa indiscrição comprometa, para sempre, a oportunidade de obter outros
contratos ...
Diversamente
à pesquisa universitária, onde os resultados são normalmente publicados no nome
daquele que os obteve - e essa personalização das idéias produzidas vale muito,
como para todos os intelectuais -, a pesquisa em geografia aplicada coloca o
pesquisador num status bem diverso, o de todos os assalariados que perdem
qualquer direito sobre os frutos de seu trabalho, desde que tenham sido
remunerados. Trata-se, no fundo, de uma espécie de proletarização.
Pouco
a pouco, as atividades de pesquisa, no seu conjunto, tendem a não poderem mais
ser realizadas senão em condições que proíbem a difusão dos seus resultados: é
unicamente fazendo a pesquisa por conta de determinada organização que se pode
não somente dispor de certos meios materiais, como, sobretudo, da possibilidade
de ter acesso à informação.
A
posição universitária de intelectual independente, que liga seu nome aos
resultados de uma pesquisa que ele escolheu. que ele realizou na qualidade de
obra científica pessoal (e, às vezes, de obras-primas), que ele pode fazer ser
conhecida mais ou menos amplamente, tende a ceder lugar a uma condição de
empregado, de técnico engajado sob contrato, freqüentemente a título
temporário, para efetuar anonimamente uma pesquisa mais ou menos parcelada, por
conta de um organismo público ou privado, que fixa o objeto e o quadro espacial
e que detém os resultados, a título de propriedade exclusiva.
É
imprescindível que os geógrafos tenham relações com o poder e tais relações são
necessárias para que a geografia não seja tão-só um discurso ideológico e que
ela apareça como saber estratégico. Mas essas relações podem não ser
necessariamente servis; elas podem ser contraditórias e, para certas pessoas,
antagônicas.
Para uma
geografia das crises
Sem
dúvida pode-se dizer que, desde que se fizeram traçados de estradas, ferrovias,
ou que se criaram cidades, fez-se geografia "aplicada”, e são sobretudo
militares, engenheiros, homens de negócios que trabalharam um conjunto de
informações, de cartas e de raciocínios para dominar o espaço e ali agir. Essa
fase, que corresponde à descoberta e à organização de espaços até então mal
conhecidos e mal controlados por aqueles que detinham o poder está quase
terminada na maioria dos países. Ela durou até o fim do século XIX nos
"países novos", até a metade do século XX na URSS, mas ela bate em
cheio atualmente nos países do Terceiro Mundo.
Hoje,
na maioria dos países, as pesquisas de "geografia aplicada" se
desenvolvem principalmente em espaços onde se manifestam, recentemente,
dificuldades de ordem variada. Essa "manifestação das dificuldades" é
uma expressão ambígua que envolve relações complexas de causalidade: seja que o
governo se ache levado a "considerar” fenômenos já antigos, em razão de
seu agravamento brutal, em decorrência de uma tomada de consciência quase
geral; seja que os dirigentes se advirtam de que uma certa região
"conhece" tal problema "específico", que é, na realidade,
bem mais geral. Sempre acontece que as pesquisas de geografia aplicada são
direta, ou indiretamente, função de "problemas", de
"dificuldades", de "mal-estares", de
"desequilíbrios", que se trata para o governo de resolver, de transpor.
É de se notar que essas pesquisas não são, diretamente, uma tarefa dos
burocratas, dos políticos ou dos práticos, mas são da alçada dos
"especialistas", geógrafos (transformados, às vezes, em planejadores
espaciais) que têm um estatuto de “cientistas". Esses são, numa grande
proporção, externos aos organismos políticos e administrativos, para quem esses
estudos são realizados, e que terão, ao menos em princípio, de tomar decisões,
em conseqüência.
Essa
crise dialética se acelera, não somente no tempo, como também no espaço. Ela
não se manifesta uniformemente na superfície do globo mas, bem ao contrário,
ela aí toma formas cada vez mais diferenciadas, embora cada vez mais ligadas
umas às outras. Esse processo de diferenciação está ainda muito mal analisado.
Faz-se alusão a ele, constatando, de modo extremamente esquemático, os
contrastes que existem entre os países ditos "desenvolvidos" e os
países ditos “subdesenvolvidos". Mas essa diferenciação, que está ligada
aos efeitos contraditórios de fenômenos relacionais cada vez mais rápidos e
estreitamente ligados, se manifesta não somente em nível planetário, mas no
bojo do Terceiro Mundo, como no bojo do grupo dos países mais industrializados
e também no quadro de cada Estado, como no quadro das diversas "regiões",
que é útil distinguir para cada um deles. Essa diferenciação não se marca
somente por indicadores econômicos, os quais, após os economistas, adquirimos o
costume de referir. Ela se manifesta também no plano de cada um dos diferentes
grandes tipos de contradições que parece útil distinguir (por exemplo, as
contradições demográficas, as contradições ecológicas, as contradições
políticas ...). Sua propagação, suas interações, não se efetuam somente sobre
formas de organizações econômicas e sociais já bastante diferenciadas, mas
também num espaço onde a diversidade das condições naturais, ecológicas, é
ainda mais complexa, em razão das transformações provocadas pelos métodos de
exploração que ali foram praticados. Para perceber os diferentes aspectos dessa
superposição, cujos elementos conhecem ritmos de evolução mais ou menos
rápidos, é preciso distinguir vários níveis de análise espacial, pois as
contradições não se manifestam da mesma forma, quando as abordamos a nível
local (tal como as pessoas as suportam diretamente) e sobre muitos espaços mais
amplos, onde elas devem ser apreendidas de maneira mais abstrata.
Em
si mesma, a análise das formas de diferenciação espacial da crise constitui um
saber estratégico extremamente útil, portanto extremamente perigoso. Os
dirigentes das grandes firmas e dos grandes aparelhos de Estado, capitalistas,
apesar de sua repugnância ideológica com relação ao marxismo, são também
"realistas". Eles se lembram, por exemplo, de que puderam interromper
as crises clássicas de superprodução, a partir do momento em que o Dr. Keynes
se apoderou implicitamente da análise de Marx, para propor uma estratégia
"anticíclica", e eles perceberam que a reforma agrária, reclamada
desde há muito pelas forças de esquerda em numerosos países, poderia não ser
assim tão má. De fato, os dirigentes dos aparelhos de Estado e dos grandes
grupos capitalistas têm cada vez mais necessidade de uma análise marxista, nem
que seja para, no mínimo, compreender o "terreno" e as intenções do
adversário. Mas lhes é bem difícil, por razões evidentes de estratégia
ideológica, incitar aqueles que trabalham para eles a assimilar o marxismo para
poderem analisar eficazmente as situações, e suas evoluções contraditórias. É
porque, para aquilo que foi convencionado chamar os estados-maiores, é
necessário, senão apelar para pesquisadores marxistas, ao menos deixá-los
produzir para utilizar seus trabalhos.
Esses homens e
essas mulheres que são objetos de estudo
De
fato, o problema não está somente entre o pesquisador e o poder, mas entre o
pesquisador, o poder e aqueles que vivem no espaço ao qual se refere a
pesquisa, isto é, os homens e as mulheres que são, como se diz,
"objetos" de estudo. A geografia deve estar bem consciente de que,
analisando espaços, ela fornece ao poder informações que permitem agir sobre os
homens que vivem nesses espaços. A contradição pode ser esquematizada da
seguinte maneira: quanto mais uma pesquisa estiver em condições de apreender as
realidades (e, em particular, mais ela percebe as diversas contradições,
referindo-se mais ou menos explicitamente a uma análise marxista), isto é,
quanto mais o valor científico dessa análise for grande, mais o poder disporá
de informações preciosas que lhe permitirão agir de forma eficiente sobre o
grupo estudado: teoricamente, é para o bem desse último ou no interesse geral,
mas de fato, na maioria das vezes, não é nada disso.
É
preciso que o geógrafo perceba que ele é, de fato, não um espectador impotente,
mas um agente, de informações, quer queira, quer não, a serviço do poder, e
suas proclamações revolucionárias ou suas preocupações morais não mudarão nada
aí. É preciso que ele perceba que sua pesquisa pode ter graves conseqüências,
mesmo se ela apresenta um caráter parcial (pois seus resultados podem ser combinados
aos de outras pesquisas), mesmo se ela só aborda as características físicas de
um espaço (foi de acordo com as conclusões de geomorfólogos quanto à erosão
que, em numerosos países, centenas de milhares de pessoas foram expulsas dos
lugares onde viviam, para fazer reflorestamento, trabalhos de defesa e de
restauração dos solos). O geógrafo deve se lembrar constantemente que a
geografia é um saber estratégico, e que um saber estratégico é perigoso.
Como
os textos geográficos (e também os que procedem das ciências sociais) seriam
diferentes se o pesquisador devesse, antes de começar a redação final, ler o
que produziu e explicá-lo diante das pessoas que vivem no espaço que ele
estudou e que são, de um modo ou de outro, concernentes à sua pesquisa! Mas, na
maioria das vezes, as pessoas que acolheram o geógrafo, que responderam às suas
múltiplas questões, que o guiaram no terreno, que o ajudaram de várias formas,
não saberão jamais o que dali retirou; em contrapartida, ele comunicará
diretamente (ou não) todos os dados que obteve àqueles que os utilizarão para
melhor elaborar as forças de que dispõe sobre o território que ele estudou;
sobre os homens e as mulheres que ali vivem e dos quais a pesquisa revelou,
expôs as características, em particular aquelas que revelam as maneiras pelas
quais eles se organizam espacialmente. Não é somente metáfora dizer que, por
esse fato, esse grupo que foi objeto de pesquisa está ainda mais exposto às
formas de agir das forças econômicas e políticas que estão poderosamente organizadas
sobre espaços bem mais consideráveis. Se bem que estejam às vezes longe,
aqueles que dirigem essas forças dispõem sobre esse grupo, para agir sobre ele,
de informações, mais eficientes do que o grupo tem de si próprio. Pois esse
conhecimento implícito maquinal as diversas maneiras pelas quais o grupo
utiliza seu território - é ainda estreitamente confundido com práticas usuais
comuns a todos os membros do grupo e circunscrito a um espaço mais ou menos
limitado. A despeito de sua riqueza, enquanto ela não tenha sido transformada,
esse saber espontâneo não pode lhes servir para compreender e enfrentar
situações novas que resultam de empreendimentos dirigidos do exterior sobre
espaços bem mais vastos, em função de objetivos ou de estratégias que são
escondidos da maioria. Mas em boa parte é desse conhecimento, até então não
formulado, não dissociado da vida cotidiana, que o geógrafo vai extrair, por
sua enquête, em função de uma certa problemática, dados que, uma vez
formulados, formalizados, cartografados se tornarão instrumentos eficazes para
ações que serão empreendidas sobre esse grupo segundo estratégias e objetivos
que ele ignora. Estando o geógrafo, consciente ou não, são essas estratégias e
esses objetivos que orientam, em grande parte, a problemática que ele elabora e
que o incita a se interessar por isto e não por aquilo.
É preciso que as
pessoas saibam o porquê das pesquisas das quais são o objeto
Para
que os homens e as mulheres que vivem num espaço que vai ser objeto, tal como
eles Próprios, de uma pesquisa geográfica, possam ter, também, conhecimento dos
resultados que ela fornecerá, de nada serve proporcionar cursos,
inoportunamente, para lhes ensinar o que eles são; é preciso que eles sejam
postos ao corrente das razões pelas quais essa pesquisa foi encetada, do que
vai, talvez, se passar no lugar onde moram, com a atenção voltada para o que se
passa alhures, levando em consideração os projetos do poder. Uma das primeiras
regras dessa deontologia do geógrafo sobre o terreno, que seria preciso impor
para que ele cesse de ser um espião e evitar que seja um canalha, mais ou menos
inconsciente, seria que ele explicasse por que está ali, por que se interessa
por isso e por aquilo, por determinada forma de terreno, ou determinada maneira
de irrigar a terra, etc., e as pessoas estarão, logo, extremamente interessadas
pelo porquê dessas investigações, pois elas percebem, rapidamente, que isso
lhes diz respeito, no mais alto grau. É preciso pouco tempo para que a análise
geográfica lhes apareça, de fato, no seu papel estratégico. Evidentemente essa
maneira de agir coloca problemas, pois o geógrafo vai aparecer como agente do
poder. Mas o problema do poder não se coloca mais para ele no plano do caso de
consciência após o término de sua pesquisa (quem irá utilizar seus
resultados?). O problema está colocado desde o princípio e, em termos
finalmente políticos, no bojo do grupo "objeto da pesquisa" que vai
discuti-lo e se inteirar dos projetos do poder e das contradições que eles acarretam.
O geógrafo, pelo fato de ter começado a expor suas finalidades, deverá se explicar
e definir suas posições em face às contradições que arrisca provocar a
execução dos
projetos do poder.
Sem
dúvida, ele está certo de que, uma vez revelados os fins de certas pesquisas ao
grupo que deve ser o objeto delas, estas não poderão se efetivar e o geógrafo
deverá partir. Em certos casos, resultantes de mal-entendidos, será evidentemente
uma pena. Mas, na maioria das vezes, isso será tanto melhor e certos golpes
maldosos não poderão mais acontecer assim tão facilmente. Se refletirmos bem
sobre isso, é perfeitamente justo que um grupo recuse ser estudado e que se oponha
a que se analise a maneira pela qual utiliza o espaço onde vive.
Em
contrapartida, os resultados de uma pesquisa da qual um grupo decidiu participar,
com conhecimento de causa, são de uma extrema riqueza, tanto do ponto de vista
propriamente científico, como no plano cultural e político. Um certo número de
exemplos, tanto nas sociedades altamente industrializadas, como nas do Terceiro
Mundo, prova que tudo isso não é utopia. Por causa mesmo do caráter eminentemente
estratégico do raciocínio geográfico, desde que ele esteja ligado a uma
prática, grupos relativamente pouco numerosos (de algumas centenas a alguns milhares
de pessoas), conscientes de ocupar um espaço delimitado sobre o qual eles têm
direitos, podem participar verdadeiramente de uma pesquisa sobre as formas de organização
espacial de suas atividades e sobre as mudanças positivas e negativas que são
suscetíveis de ali serem operadas, desde que eles hajam compreendido que o
saber que dali retiram vai lhes permitir se organizar e se defender melhor.
Esse saber resulta, em larga escala, da transformação da explicação, sob o
efeito das questões do geógrafo, deste conhecimento coletivo da situação local,
que até então não havia sido formulada. Mas o saber integra também as
informações fornecidas pelo geógrafo sobre o que se passa alhures e sobre os
fenômenos que não podem mais ser apreendidos senão levando em consideração
espaços bem mais extensos.
A crise da
geografia dos professores
É
justamente o interesse crescente - e não o desinteresse, para o que se passa no
conjunto do mundo, que determina - em grande parte, as dificuldades dos
professores de geografia. Sem dúvida, no caso da geografia, a relação
pedagógica veio a ser transtornada, pois o mestre não tem mais, como outrora e
como ainda acontece com outras disciplinas, o monopólio da informação.
Antigamente o curso de geografia, mesmo com um discurso-catálogo que pareceria
agora uma caricatura inventada por estudantes esquerdistas, suscitava
interesse, porque ele era o único a trazer a informação; hoje, mestre e alunos
recebem ao mesmo tempo, simultaneamente com as atualidades, uma massa de
informações geográficas, caóticas. Geografia em pedaços, o ocasional, o
espetacular, sem dúvida, mas geografia de qualquer forma. Por que em classe os
alunos não querem mais ouvir falar de geografia? Por causa da repetição, do
"já dito"? Seguramente, não.
Os primórdios de
uma grande polêmica epistemológica
Se
uma geografia (a dos professores), após ter sido, durante muito tempo,
negligenciada, é hoje rejeitada pelos alunos (suas motivações sendo,
evidentemente, muito confusas) e se ela começa a ser posta em causa por
especialistas de outras disciplinas (sem que eles ali vejam, ainda, muito
claro), é que somente ela não parece mais capaz de dar uma descrição do mundo
que satisfaça as nossas preocupações atuais, mas também porque se acaba de
perceber, ainda muito confusamente, que ela é uma espécie de tela que impede de
apreender, convenientemente, problemas graves em suas configurações espaciais e
pressente-se agora que esta é uma característica primordial, por ser a mais
estratégica.