quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A Disciplina Geografia e os Parâmetros Curriculares Nacionais: uma abordagem das Políticas de Currículo para o Ensino Médio

Resumo

A globalização traz a preocupação com um  ensino integrado, articulado com o desenvolvimento das mudanças tecnológicas e para “a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos”, visando à formação de trabalhadores com alta qualificação para manutenção e inovação do padrão tecnológico de produção vigente, “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Os PCNEM apresentam como eixo principal a reorganização curricular baseada na interdisciplinaridade e contextualização, competências e tecnologias.
            Nos PCNEM, a interdisciplinaridade é amparada pela afirmação de que existem contornos frágeis e pouco nítidos entre as disciplinas, os quais poderiam beneficiar o diálogo e o intercâmbio entre as mesmas. O indivíduo que se almeja preparar na atualidade tem sua vida, para além das atividades no posto de trabalho, associada à perspectiva de se tornar – ou manter-se – empregável.
A nova sociedade, decorrente da revolução tecnológica e seus desdobramentos na produção e na área da informação, apresenta características possíveis de assegurar à educação uma autonomia não alcançada. Isto ocorre na medida em que o desenvolvimento das competências cognitivas e culturais exigidas para o pleno desenvolvimento humano passa a coincidir como o que se espera da produção. O novo paradigma emana da compreensão de que, cada vez mais, as competências desejáveis ao pleno desenvolvimento humano aproximam-se das necessárias à inserção no processo produtivo (Brasil, 1999, v. 1, p. 25).
Para Lopes e Lopez (2006) com a nova organização espera-se ser possível dar conta da formação de competências mais complexas em um sujeito onicompetente: produtivo, eficiente, polivalente, pró-ativo, assertivo, disponível à compreensão de outras culturas.
O foco da argumentação, em prol da integração, reside na defesa de um sujeito que seja capaz de dialogar com diferentes áreas do conhecimento, tornando-se supostamente capaz de cooperar no processo de construção do conhecimento e  tecnologias, os quais, na atualidade, exigiriam tal cooperação.
(...) Há ainda a necessidade de se articularem os processos macro e micro no estudo de políticas educacionais.
(...) A política não é confeccionada e acabada no momento legislativo e os textos necessitam ser lidos com relação ao tempo e ao local específico de sua produção (Bowe et al.,1992: 29-35).
Ball considera que os profissionais que operam no contexto da prática (escolas, por exemplo) não enfrentam os textos políticos como leitores ingênuos, pueris eles vêm com suas histórias, experiências, valores e propósitos (Bowe et al.,1992:22). Políticas serão interpretadas diversamente, entendendo que as experiências, histórias, valores, propósitos e interesses são múltiplos. A questão é que os autores dos textos políticos não podem manter controle sobre o significado de seus textos. Componentes podem ser rejeitados, selecionados, deliberadamente mal entendidos etc. Interpretações distintas serão contrariadas, uma vez que se relacionam com interesses diversos, uma ou outra interpretação prevalecerá, ainda que desvios ou interpretações minoritárias possam ser importantes. (Bowe et al., 1992)
Com base na discussão estabelecida por Lopes (2008), argumento que as disciplinas não expressam apenas espaços epistemológicos, mas são, sobretudo, produções políticas e sócio-históricas de comunidades que têm interesses comuns e se utilizam de recursos materiais e ideológicos para desenvolver suas missões individuais e coletivas (Goodson, 1997).
A organização curricular nas escolas permanece concentrada nas disciplinas escolares, mesmo quando propostas de currículo integrado são desenvolvidas e/ou valorizadas.
Tais princípios são a base que dá sentido à área de Ciências Humanas e suas Tecnologias. O trabalho e a produção, a organização e o convívio sociais, a construção do “eu” e do “outro” são temas clássicos e permanentes das Ciências Humanas e da Filosofia. Constituem objetos de conhecimentos de caráter histórico, geográfico, econômico, político, jurídico, sociológico, antropológico, psicológico e, sobretudo, filosófico.
Já apontam, por sua própria natureza, uma organização interdisciplinar. Agrupados e reagrupados, a critério da escola, em disciplinas específicas ou em projetos, programas e atividades que superem a fragmentação disciplinar, tais temas e objetos, ao invés de uma lista infindável de conteúdos a serem transmitidos e memorizados, constituem a razão de ser do estudo das Ciências Humanas no Ensino Médio.(Brasil,1999)
Entende-se que há necessidade de um currículo integrado, pois este é capaz de formar as habilidades e competências mais complexas essenciais aos processos produtivos. Com a introdução dos modelos de produção ‘just-in-time’, o trabalhador deixa de ser o realizador de uma única tarefa por vez, com alto grau de especialização dessa tarefa e com quase nenhum treinamento no trabalho. Igualmente, deixa de estar inserido numa organização altamente verticalizada, na qual assume responsabilidade restrita. Ela passa a ser um trabalhador que executa múltiplas tarefas não especializadas, para as quais há necessidade de treinamento nos próprios locais de trabalho. Esse trabalho é organizado de forma mais horizontal, de maneira que o trabalhador é co-responsável pelas atividades realizadas. As concepções de espaço e tempo também se modificam: há agregação de espaços, o tempo não é mais fixamente determinado, ampliando-se as jornadas de trabalho para além do horário e do espaço do emprego (Harvey,1996).
Nessa perspectiva, discuto o caso da Geografia na área de ciências humanas, tomando-a como emblemática por se tratar de uma área na qual não costumam existir fortes resistências à integração. Alguns autores da Geografia (Pontuschka, 2007) consideram mesmo como uma característica intrínseca da ciência geográfica, a interdisciplinaridade.
A consequência de uma opção pela interdisciplinaridade deve ser, portanto, a formação de cidadãos dotados de uma visão de conjunto que lhes permita, de um lado, integrar os elementos da cultura, apropriados como fragmentos desconexos, numa identidade autônoma e, de outro, agir responsavelmente tanto em relação à natureza quanto em relação à sociedade. (Brasil, 1999:56)
No esforço de estabelecer uma unidade na diversidade, de se abrir a outras possibilidades mediante uma visão de conjunto, a Geografia muito pode auxiliar para romper a fragmentação factual e descontextualizada. Sua busca por pensar o espaço enquanto totalidade, por onde passam todas as relações cotidianas e onde se estabelecem as redes sociais nas diferentes escalas, requer esse esforço interdisciplinar. O espaço e seu sujeito são constituídos por interações e seu estudo deve ser, por isso, interdisciplinar. O conhecimento geográfico resulta de um trabalho coletivo que envolve o conhecimento de outras áreas (...). Nesse sentido, a Geografia pode articular-se de forma interdisciplinar com a Economia e a História, quando tratar das questões ligadas aos processos de formação da divisão internacional do trabalho e a formação dos blocos econômicos. Questões contemporâneas, tais como crise econômica, globalização do sistema financeiro, poder do Estado e sua relação com a economia e as novas resultantes espaciais das desigualdades sociais, podem ser tratadas pela Geografia em diálogo com a Economia e a Sociologia. A espacialização dos problemas ambientais e da biotecnologia favorece a interação com a Biologia, a Física, a Química, a Filosofia e, mais uma vez, a Economia (Brasil, 1999:32).
No entanto, em uma relação ambivalente com o discurso de integração constituído pelo documento oficial, a Geografia, assim como as outras disciplinas, aparece como um documento isolado.
Ao tratar especificamente a disciplina Geografia, inicialmente, faz-se, nos PCNEM, asserções quanto as possibilidades da disciplina em trabalhar os aspectos filosóficos propostos - princípios estéticos, políticos e éticos -, “propondo à disciplina o dever de buscar um modo de transformar indivíduos tutelados e infantilizados em pessoas em pleno exercício da cidadania” (Brasil, 1999:31),  e apoia-se nessas questões filosóficas para introduzir as competências e a habilidades especificas da disciplina. 
Concluo que, a despeito de o documento, a priori, preconizar a integração disciplinar, via interdisciplinaridade e contextualização, e para isso propõe um ensino organizado em competências, tal objetivo não se concretiza no documento. Isso porque, apesar de as competências, sob a ótica da história curricular, não dependerem dos saberes disciplinares, se articulam, no documento, com os conteúdos, pressupondo uma determinada seleção de conteúdos, constituindo uma hibridização.
De forma ambígua, a associação entre disciplinas e competências, entre disciplinaridade e integração de saberes, se faz pela afirmação do território disciplinar e pela afirmação de que as competências remetem a propostas e conteúdos atualizados. Por intermédio dessa associação, a ‘novidade’ das competências é associada aos conteúdos disciplinares e a legitimidade das disciplinas é conferida à organização curricular por competências.
Nessas listagens de competências e habilidades, é possível identificar enunciados que remetem a aspectos especificamente disciplinares, tais como:
a) Ler, analisar e interpretar os códigos específicos da Geografia (mapas, gráficos, tabelas etc.), considerando-os como elementos de representação de fatos e fenômenos espaciais e/ou espacializados (Brasil, 1999:35);
b) Reconhecer e aplicar o uso das escalas cartográfica e geográfica, como formas de organizar e conhecer a localização, distribuição e frequência dos fenômenos naturais e humanos; (Brasil, 1999:35);
c) Reconhecer os fenômenos espaciais a partir da seleção, comparação e interpretação, identificando as singularidades ou generalidades de cada lugar, paisagem ou território (Brasil, 1999:35);
d) Compreender e aplicar no cotidiano os conceitos básicos da Geografia; (Brasil, 1999:35);
Assim, focalizo nos documentos nítidas fronteiras estabelecidas para Geografia, permitindo observar que os limites disciplinares são mantidos, contrariando um discurso de integração curricular. A partir da premissa comum de mudança – nas metodologias, nos conteúdos, nos modos de avaliação, na visão de cidadão que se quer formar –, estes discursos em outras épocas entendidos como conflitantes se articulam de maneira a delinear a nova identidade do ensino médio. Por sua vez, as comunidades disciplinares, advogando em defesa de suas demandas específicas, acabam alinhando-se com o discurso pró-modernização e pró-globalização, a partir do pressuposto de que ele coopera no combate ao “currículo tradicional enciclopédico”.

Fonte: A Disciplina Geografia e os Parâmetros Curriculares Nacionais: uma abordagem das Políticas de Currículo para o Ensino Médio -  Hugo Heleno Camilo Costa (CNPq/UERJ)

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