Resumo
A globalização traz a preocupação
com um ensino integrado, articulado com
o desenvolvimento das mudanças tecnológicas e para “a compreensão dos
fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos”, visando à formação
de trabalhadores com alta qualificação para manutenção e inovação do padrão tecnológico
de produção vigente, “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Os PCNEM apresentam
como eixo principal a reorganização curricular baseada na interdisciplinaridade
e contextualização, competências e tecnologias.
Nos PCNEM, a interdisciplinaridade é
amparada pela afirmação de que existem contornos frágeis e pouco nítidos entre
as disciplinas, os quais poderiam beneficiar o diálogo e o intercâmbio entre as
mesmas. O indivíduo que se almeja preparar na atualidade tem sua vida, para
além das atividades no posto de trabalho, associada à perspectiva de se tornar –
ou manter-se – empregável.
A
nova sociedade, decorrente da revolução tecnológica e seus desdobramentos na produção
e na área da informação, apresenta características possíveis de assegurar à
educação uma autonomia não alcançada. Isto ocorre na medida em que o desenvolvimento
das competências cognitivas e culturais exigidas para o pleno desenvolvimento
humano passa a coincidir como o que se espera da produção. O novo paradigma emana
da compreensão de que, cada vez mais, as competências desejáveis ao pleno
desenvolvimento humano aproximam-se das necessárias à inserção no processo
produtivo (Brasil, 1999, v. 1, p. 25).
Para Lopes e Lopez (2006) com a nova organização espera-se ser
possível dar conta da formação de competências mais complexas em um sujeito
onicompetente: produtivo, eficiente, polivalente, pró-ativo, assertivo,
disponível à compreensão de outras culturas.
O foco da argumentação, em prol
da integração, reside na defesa de um sujeito que seja capaz de dialogar com
diferentes áreas do conhecimento, tornando-se supostamente capaz de cooperar no
processo de construção do conhecimento e
tecnologias, os quais, na atualidade, exigiriam tal cooperação.
(...) Há ainda a necessidade de
se articularem os processos macro e micro no estudo de políticas educacionais.
(...) A política não é
confeccionada e acabada no momento legislativo e os textos necessitam ser lidos
com relação ao tempo e ao local específico de sua produção (Bowe et al.,1992:
29-35).
Ball considera que os
profissionais que operam no contexto da prática (escolas, por exemplo) não
enfrentam os textos políticos como leitores ingênuos, pueris eles vêm com suas
histórias, experiências, valores e propósitos (Bowe et al.,1992:22). Políticas serão
interpretadas diversamente, entendendo que as experiências, histórias, valores,
propósitos e interesses são múltiplos. A questão é que os autores dos textos
políticos não podem manter controle sobre o significado de seus textos.
Componentes podem ser rejeitados, selecionados, deliberadamente mal entendidos
etc. Interpretações distintas serão contrariadas, uma vez que se relacionam com
interesses diversos, uma ou outra interpretação prevalecerá, ainda que desvios
ou interpretações minoritárias possam ser importantes. (Bowe et al., 1992)
Com base na discussão
estabelecida por Lopes (2008), argumento que as disciplinas não expressam
apenas espaços epistemológicos, mas são, sobretudo, produções políticas e
sócio-históricas de comunidades que têm interesses comuns e se utilizam de
recursos materiais e ideológicos para desenvolver suas missões individuais e coletivas
(Goodson, 1997).
A organização curricular nas
escolas permanece concentrada nas disciplinas escolares, mesmo quando propostas
de currículo integrado são desenvolvidas e/ou valorizadas.
Tais princípios são a base que dá
sentido à área de Ciências Humanas e suas Tecnologias. O trabalho e a produção,
a organização e o convívio sociais, a construção do “eu” e do “outro” são temas
clássicos e permanentes das Ciências Humanas e da Filosofia. Constituem objetos
de conhecimentos de caráter histórico, geográfico, econômico, político,
jurídico, sociológico, antropológico, psicológico e, sobretudo, filosófico.
Já apontam, por sua própria
natureza, uma organização interdisciplinar. Agrupados e reagrupados, a critério
da escola, em disciplinas específicas ou em projetos, programas e atividades
que superem a fragmentação disciplinar, tais temas e objetos, ao invés de uma
lista infindável de conteúdos a serem transmitidos e memorizados, constituem a
razão de ser do estudo das Ciências Humanas no Ensino Médio.(Brasil,1999)
Entende-se que há necessidade de
um currículo integrado, pois este é capaz de formar as habilidades e
competências mais complexas essenciais aos processos produtivos. Com a introdução
dos modelos de produção ‘just-in-time’, o trabalhador deixa de ser o realizador
de uma única tarefa por vez, com alto grau de especialização dessa tarefa e com
quase nenhum treinamento no trabalho. Igualmente, deixa de estar inserido numa
organização altamente verticalizada, na qual assume responsabilidade restrita.
Ela passa a ser um trabalhador que executa múltiplas tarefas não especializadas,
para as quais há necessidade de treinamento nos próprios locais de trabalho.
Esse trabalho é organizado de forma mais horizontal, de maneira que o
trabalhador é co-responsável pelas atividades realizadas. As concepções de
espaço e tempo também se modificam: há agregação de espaços, o tempo não é mais
fixamente determinado, ampliando-se as jornadas de trabalho para além do horário
e do espaço do emprego (Harvey,1996).
Nessa perspectiva, discuto o caso
da Geografia na área de ciências humanas, tomando-a como emblemática por se
tratar de uma área na qual não costumam existir fortes resistências à
integração. Alguns autores da Geografia (Pontuschka, 2007) consideram mesmo
como uma característica intrínseca da ciência geográfica, a interdisciplinaridade.
A consequência de uma opção pela
interdisciplinaridade deve ser, portanto, a formação de cidadãos dotados de uma
visão de conjunto que lhes permita, de um lado, integrar os elementos da cultura,
apropriados como fragmentos desconexos, numa identidade autônoma e, de outro,
agir responsavelmente tanto em relação à natureza quanto em relação à
sociedade. (Brasil, 1999:56)
No esforço de estabelecer uma
unidade na diversidade, de se abrir a outras possibilidades mediante uma visão
de conjunto, a Geografia muito pode auxiliar para romper a fragmentação factual
e descontextualizada. Sua busca por pensar o espaço enquanto totalidade, por
onde passam todas as relações cotidianas e onde se estabelecem as redes sociais
nas diferentes escalas, requer esse esforço interdisciplinar. O espaço e seu sujeito
são constituídos por interações e seu estudo deve ser, por isso,
interdisciplinar. O conhecimento geográfico resulta de um trabalho coletivo que
envolve o conhecimento de outras áreas (...). Nesse sentido, a Geografia pode
articular-se de forma interdisciplinar com a Economia e a História, quando
tratar das questões ligadas aos processos de formação da divisão internacional
do trabalho e a formação dos blocos econômicos. Questões contemporâneas, tais
como crise econômica, globalização do sistema financeiro, poder do Estado e sua
relação com a economia e as novas resultantes espaciais das desigualdades
sociais, podem ser tratadas pela Geografia em diálogo com a Economia e a
Sociologia. A espacialização dos problemas ambientais e da biotecnologia favorece
a interação com a Biologia, a Física, a Química, a Filosofia e, mais uma vez, a
Economia (Brasil, 1999:32).
No entanto, em uma relação
ambivalente com o discurso de integração constituído pelo documento oficial, a
Geografia, assim como as outras disciplinas, aparece como um documento isolado.
Ao tratar especificamente a
disciplina Geografia, inicialmente, faz-se, nos PCNEM, asserções quanto as
possibilidades da disciplina em trabalhar os aspectos filosóficos propostos -
princípios estéticos, políticos e éticos -, “propondo à disciplina o dever de
buscar um modo de transformar indivíduos tutelados e infantilizados em pessoas
em pleno exercício da cidadania” (Brasil, 1999:31), e apoia-se nessas questões filosóficas para
introduzir as competências e a habilidades especificas da disciplina.
Concluo que, a despeito de o
documento, a priori, preconizar a integração disciplinar, via
interdisciplinaridade e contextualização, e para isso propõe um ensino organizado
em competências, tal objetivo não se concretiza no documento. Isso porque, apesar
de as competências, sob a ótica da história curricular, não dependerem dos saberes
disciplinares, se articulam, no documento, com os conteúdos, pressupondo uma determinada
seleção de conteúdos, constituindo uma hibridização.
De forma ambígua, a associação
entre disciplinas e competências, entre disciplinaridade e integração de
saberes, se faz pela afirmação do território disciplinar e pela afirmação de que
as competências remetem a propostas e conteúdos atualizados. Por intermédio
dessa associação, a ‘novidade’ das competências é associada aos conteúdos
disciplinares e a legitimidade das disciplinas é conferida à organização curricular
por competências.
Nessas listagens de competências
e habilidades, é possível identificar enunciados que remetem a aspectos
especificamente disciplinares, tais como:
a) Ler, analisar e interpretar os
códigos específicos da Geografia (mapas, gráficos, tabelas etc.), considerando-os
como elementos de representação de fatos e fenômenos espaciais e/ou
espacializados (Brasil, 1999:35);
b) Reconhecer e aplicar o uso das
escalas cartográfica e geográfica, como formas de organizar e conhecer a
localização, distribuição e frequência dos fenômenos naturais e humanos; (Brasil,
1999:35);
c) Reconhecer os fenômenos
espaciais a partir da seleção, comparação e interpretação, identificando as
singularidades ou generalidades de cada lugar, paisagem ou território (Brasil,
1999:35);
d) Compreender e aplicar no
cotidiano os conceitos básicos da Geografia; (Brasil, 1999:35);
Assim, focalizo nos documentos
nítidas fronteiras estabelecidas para Geografia, permitindo observar que os
limites disciplinares são mantidos, contrariando um discurso de integração
curricular. A partir da premissa comum de mudança – nas metodologias, nos
conteúdos, nos modos de avaliação, na visão de cidadão que se quer formar –,
estes discursos em outras épocas entendidos como conflitantes se articulam de
maneira a delinear a nova identidade do ensino médio. Por sua vez, as
comunidades disciplinares, advogando em defesa de suas demandas específicas,
acabam alinhando-se com o discurso pró-modernização e pró-globalização, a
partir do pressuposto de que ele coopera no combate ao “currículo tradicional
enciclopédico”.
Fonte:
A Disciplina Geografia e os Parâmetros Curriculares Nacionais: uma abordagem das
Políticas de Currículo para o Ensino Médio - Hugo Heleno Camilo Costa (CNPq/UERJ)
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